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NÃO, MAS SIM. SIM, MAS NÃO

Não mas sim

Perigo.

Gosto sempre de escrever histórias com “fins” harmoniosos e felizes, mas a realidade é que há histórias que não acabam assim e outras, ao invés, são difíceis e não parecem felizes, mas são. São porque conduzem sempre a algum lado, pelo menos para alguns dos personagens. São porque as histórias não chegam propriamente ao fim. Eu é que as apanho num momento significativo e resolvo eternizá-lo temporariamente, para que possamos ver melhor, pensar melhor e, quiçá, escolher o nosso caminho com mais propriedade.

Perigo.

A relação começou por um enorme desejo sexual e foi ficando mais séria. Começou por um belo dia. Tudo se conjugou para um perfeito encontro. Depois veio um fim de semana, e mais fins de semana, e agora todos, depois mais dois dias por semana e assim sucessivamente até fazerem juras de viver juntos e ter filhos.

Ela viu tudo. Viu a “possibilidade de” e também viu o fait divers. Viu o fervilhar da pele em contradição com os jogos mentais de Aquiles que entretanto já se defendia de cair nas malhas do amor maduro. Ainda assim, Afrodite continuou a desfrutar do que a vida lhe oferecia. Ou não fosse ela Afrodite. Que eu saiba, na mitologia, Afrodite não teve nada com Aquiles. Mas não faz mal. A realidade é surpreendente. Todos temos um pouco de Aquiles e de Afrodite, de Hera, de Perséfone e por aí fora.

Ele ia dando sinais de alarme. Pequenas fugas, grandes fugas, descompromissos inesperados, alternados com arrebatamentos de paixão, cumplicidade, crises de liberdade adolescente, desconversas, conflitos, rivalidade, desconsiderações, exigências contraditórias, paixão outra vez, amor… Amor? Acho que não. Aquela mulher deusa também acha que não. Seria mais uma “tentativa de”. Uma “aproximação a”.

Sempre que ele tinha saudades dela, numa das pausas ou distâncias criadas, achava que aquilo não passava de sexo e de uma profunda amizade. Sim, sim. Amor não seria concerteza. A sua mente racional tinha, sempre a postos, o pin para fugir. Todas as vezes que chegava perto de uma enorme, incontrolável, terrivelmente atraente, confortável, acolhedora, amorosa vibração ou de um forte conflito, soavam todos os alarmes. Não, ela não era seguramente o seu tipo de mulher. Era linda. E de facto era. Era sensual. De facto era. Era inteligente e bem sucedida profissionalmente. De facto era. Era paciente e amorosa. De facto era. Era autónoma. De facto era. Era livre, verdadeiramente livre. De facto era. Mas, por ser autónoma, inteligente, amorosa e com critérios de excelência, via as incoerências e reagia às desconsiderações. Mau! Muito mau! Faltava a esta mulher a perfeição. Ela insistia em curar-lhe o calcanhar e Aquiles esperneava porque se sentia preso.

O homem desta história sufoca só de pensar que se pode seriamente vincular a alguém. O amor mais sublime é aquele que ainda não aconteceu. Aquele que há de vir. Aquele que lhe permite, na imaginação, não ser confrontado com qualquer obstáculo, qualquer exigência, apenas um amor incondicional que tudo permite, diga-se, como o de algumas mães que deixam fazer tudo e ao mesmo tempo não dão o que é preciso, que não dão limites, que estão e não estão, prometendo um amor maior e abandonando frequentemente. Ambivalência.

Estamos a falar do vínculo ambivalente. E este jogo de “ai que medo de me entregar porque ela vai seguramente abandonar-me” e, ao mesmo tempo, “vou saltar fora, mas ela no fundo ama-me” conduz a atitudes de fuga à intimidade, alternadas com uma ansiedade e controlo crescentes.

Culpabilidade. É a culpabilidade que faz com que aquela mãe volte sempre ao contacto da mesma maneira. Não é que ela não tenha amor, mas a culpa não lhe permite ir mais longe e saber o que isso é. E o menino, que cresceu neste pânico de perder, nesta falta de consistência, neste vazio de amor, nesta certeza de que mesmo que ele se porte mal e faça birras ela nunca lhe dará limites e nunca o mandará embora, passa a acreditar que o amor será sempre isto: o amor atual, sempre insuficiente, mas com a promessa de que tudo poderá melhorar um dia. O menino nem entra, nem sai. Nem se vincula, nem se separa. No futuro, com as mulheres, fará o mesmo que a mãe lhe fez, até que um dia uma delas lhe dará amor a sério, lhe mostrará o que é compromisso e vínculo seguro e também lhe dará limites rigorosos e implacáveis.

Assim foi a história daquele casal. Ele bem tentou passar de um registo a outro, como se nada fosse, para não sentir a dita ansiedade de separação e o medo da perda, mantendo a distância de segurança chamada “descompromisso”. Ele não lhe chama descompromisso, como é óbvio. Isto diz Afrodite e digo eu que estudo e escrevo sobre estas matérias. Ele chama “salvaguardar uma amizade importante”. Mas ela não aceitou, claro. Ele não teve alternativa senão passar sozinho o deserto da separação. Estou certa de que no fundo da sua alma infantil há uma voz de criança que continua a dizer: “Um dia há de chegar um amor maior, um amor em que tudo flui, em que eu não precisarei de fazer nenhuma adaptação de fundo, nenhuma mudança; haverá uma mulher que seja capaz de se ajustar ao caleidoscópio infinito da minha personalidade, incluindo as mudanças repentinas de humor, os vaipes de “liberdade” e os meus próprios desencantos. Essa mulher será capaz de se metamorfosear a cada instante para acompanhar a minha energia fabulosamente complexa, neste processo contínuo de me conhecer e de me experimentar ser. Há de haver uma mulher que não necessita. Não necessita de nada. Tão sublime que nada será suficiente para a vulnerabilizar. Uma verdadeira deusa. Um dia, terei uma mãe verdadeiramente incondicional, vestida de mulher. Amar-me-á tanto e será tão igual a mim que seremos um só”.

Perigo.

O que este homem não compreende é que essa mulher mãe será sempre o seu espelho e, quando ele estiver frustrado num daqueles momentos de experimentar ser e de se conhecer, ela também estará assim. Eu sou tu e tu és eu. E ele ficará extremamente irritado, achando que aquela coisa desagradável e feia é ela. Ele não. Essa coisa feia e má é ela! Chama-se a isto Simbiose. E a Simbiose conduz infalivelmente os indivíduos à frustração. Informo que a simbiose só é saudável até aos 8 meses de idade. A seguir, se permanecer, cavará o fosso emocional entre os seus atores que lutarão consecutivamente com múltiplas projeções psíquicas. Juntos para sempre, mas nas guerras conhecidas e num certo longing por aquele amor… enquanto alguns optam por se separar e continuar a saga da procura do Graal. Trabalhoso, sem dúvida.

Passou um ano. Afrodite fez o luto. Aquiles reapareceu. Ela permitiu o encontro. À medida que a conversa ia avançando, Afrodite reparou que Aquiles continuava ferido no mesmo calcanhar. Viria ele confessar a falta que ela lhe fez? Viria ele reconhecer que gostaria de poder reatar a relação de amor? Não. Veio dizer que estava absolutamente resolvido, mas com uma coisa estranha a acontecer. O desejo por ela continuava de tal ordem grande, mesmo à distância, que ele não conseguia prosseguir a sua vida com outras pessoas. Que seria isto? Ele não a ama, está absolutamente certo de que a separação foi a melhor decisão que ele poderia ter tomado, mas o desejo por ela tinha vida própria e intrometia-se a cada instante, nos momentos mais inconvenientes. E esta? Afrodite (mais Héstia sábia do que outra coisa) ficou atónita. Sem mostrar, claro. Continuou como se nada fosse, como se, de mãos dadas, o conduzisse pelos meandros da sua própria clivagem.

Clivagem é o termo. Aquiles vive entre os dois pólos, cabeça e sexo. O coração continua fechado e, portanto, sem poder fazer ligações emocionalmente inteligentes. Em nenhum momento entendeu que ele talvez gostasse mesmo dela. Que talvez valesse a pena viver aquele amor e aprimorá-lo herculeamente. Que talvez seja isso a perfeição. Um encontro entre dois seres cheios de particularidades e cumplicidades fortes, em processo contínuo de evolução. Um encontro entre dois seres que, na ausência um do outro, se apercebem da durabilidade dos sentimentos e da presença forte de ambos, que impregna todo o espaço à volta. Em nenhum momento ele percebeu que para se ter o amor perfeito não se pode abandonar o barco e continuar a ser o menino mimado à espera da tal mulher mãe. Em nenhum momento ele percebeu que a perfeição é imperfeita e que é por isso que existimos. Para curar os nossos calcanhares de Aquiles e nos transformarmos em homens e mulheres livres e, ao mesmo tempo, simples e serenos em relação à Vida. Ele infelizmente ainda não percebeu que a infância nunca mais volta e que essa mãe incondicional também não existe dessa maneira. Que ele é homem e é responsável por transcender a sua história e crescer. E que só existem mães que fazem o melhor que sabem e se arriscam a educar. Que umas são mais bem sucedidas do que outras e que todas elas tiveram mãe. Ele não entende que a perfeição é ser-se humano e crescer continuamente, com os olhos postos no horizonte divinamente perfeito da nossa imaginação. Que ser perfeito é ser-se humano e misturar-se paritária e humildemente com todos os seres que erram, sem paternalismo. É ser-se humano, imperfeito e nobre, feio e bonito, forte e vulnerável, com prazer e dor. Sempre em movimento! Imperfeito! Com os olhos postos no horizonte divino da nossa imaginação!

Não interessa o fim da história. Apenas o episódio. Afrodite saiu do jogo da ambivalência e nunca mais regressou a ele. Aquiles terá que viver ainda muitas desilusões e equívocos semelhantes, repetindo, repetindo, repetindo … até um dia … ou… sempre…

Aquiles poderia ter decidido ser o Pedro do Poema de Gratidão que escrevi em tempos. Optou antes por continuar a surfar nas ondas do sim, mas não, não, mas sim. É por estes misteriosos motivos que não podemos deixar de acreditar na transformação do Homem. Está-se na fronteira, na ponte ou em alto mar e, de repente, devagar, escolho uma saída mais plena. Ou, então, escolho viver coerentemente dentro dos limites definidos pela ferida artrítica do meu calcanhar, sem ludibriar os outros. Ambas as saídas são transformadoras.

E para os que ficarem no sim, mas não, não, mas sim, não sei o que poderá acontecer. A história deste Aquiles em concreto continua, o mais certo, longe da minha observação e da de Afrodite. Noutros lugares do mundo, a vida continuará a acontecer-lhe e a oferecer-lhe as suas infinitas oportunidades. Quem sabe?

 

Nota 1: estão salvaguardadas todas as regras de sigilo profissional.

Nota 2: o recurso aos nomes de Aquiles e de Afrodite é para simbolizar apenas o tema da vulnerabilidade do personagem masculino e o tema da sexualidade/sensualidade que aquele atribui à mulher da história.

 

CLANDESTINA

2014-08-20 16.04.15

O Encontro deu-se num relance de olhar.

Havia muitas pessoas, ruídos, música, mesa farta e, no entanto, aquele olhar desacelerou o tempo dos futuros amantes.

Tudo aconteceu sob a força incontrolável da fisiologia do instinto.

Nesse dia, fizeram acordos tácitos de ternura. No futuro, numa das despedidas, desfariam esses acordos, esfumando-se estes docemente no espaço. Sem dor. Com lágrimas doces.

Clandestina é uma mulher adulta, madura e responsável. Apeteceu-lhe muito deixar-se ir naquele abraço. E foi.

Há histórias assim, de pele, mas de pele “lá dentro”, sem palavras, feitas de imagens, sensações e momentos. Existem apenas num plano onírico e as palavras proferidas pertencem à linguagem dos amantes, sem antes nem depois.

Alguém um dia sonhará este sonho e o cupido cósmico lançará a sua flecha, trazendo na ponta aguçada o espírito daquele romance.

Tudo o que acontece faz parte do livro histórico da humanidade, dos arquétipos da psique humana.

Clandestina abriu caminho. O tempo encarregar-se-á de fazer germinar a semente de um encontro feliz. Podem passar-se anos. Podem outros tropeçar no sonho acabado de sonhar e, zás. Haverá um antes e um depois.

A maturidade emocional pode transformar um episódio efémero e clandestino num ato de coragem que pode salvar alguém. Pode resgatar o instinto adormecido de uma mulher, ressuscitar os seus sonhos abandonados, fazer funcionar os seus ovários, recuperar o canto profundo da sua alma, torná-la mais bonita, acordá-la, despertá-la de uma dormência psíquica, atirá-la “violentamente” para o trilho verdadeiro da sua vida.

A maturidade emocional permite-nos ser responsáveis pelas nossas vivências, entrar e sair de sítios perigosos, com um tesouro na mão.

Esta história é inspirada na vivência de uma mulher em fim de terapia. Muitas vezes tropeçou em histórias amorosas complicadas, ficando presa, por longos períodos de tempo, a um sofrimento repetido, típico de quem perde a força, o eixo, a autoestima. O fim da sua caminhada terapêutica foi atravessado por um acontecimento inesperado. Estávamos ambas expectantes relativamente ao seu significado. Estaria ela a repetir novamente o script? Por que voltaria ela a escolher uma situação amorosa aparentemente pouco promissora?

Não. Desta vez, seria necessário ser mulher. Deixar de ser a menina despeitada, a Perséfone perdida no mundo subterrâneo de Hades. Seria preciso assumir a sua curiosidade até ao fim e a responsabilidade pelos suas escolhas. Resgatar a força para sair. Não culpar o outro. Não manipular o outro. Entrar, viver, sentir e separar-se. E, por acaso, ter vivido a mais amorosa de todas as histórias, dizendo adeus através de um olhar azul, grato, húmido de tão doce, cheio de marcas de ternura, reconhecimento, nutrição, paixão, proteção, beleza e inocência.

Há histórias assim. Quando tudo parece ter chegado a um certo equilíbrio e bom senso, a vida apresenta mais uma armadilha. A derradeira, a que põe à prova a nossa verdadeira capacidade de largar o que não nos serve!

Não tenho dúvidas de que esta mulher está pronta. Pronta para se amar e continuar, sem o olhar da terapeuta, pela estrada fora da vida.

O verdadeiro amor vem de nós e fica. É próprio. Permanece inabalável nas nossas escolhas. Pode ser sozinho ou acompanhado. Pode ter a forma de uma relação, de um episódio amoroso, de um projeto, de um ato criativo em estado febril, de uma separação, de uma vida solitária na floresta, na companhia cantante da alma. Livre.

Parabéns, Clandestina! Às vezes é necessário recuar ao passado e passar pelas tormentas conhecidas, para sair dele com a graciosidade de uma bailarina, sem chamuscar a autoestima.

Mulheres e homens abençoados pela vida nunca têm caminhos lineares. Têm segredos, deslizes, quedas, desencontros sucessivos. Não obstante, têm em comum um olhar brilhante e curioso, sentido apurado, grande capacidade de amar e proteger, muita resistência e uma certa teimosia. Têm choro fácil e, às vezes, são irascíveis. São fortemente intuitivos e ferozmente leais. Caem e levantam-se inúmeras vezes, levando sempre consigo papel e lápis, para reescrever a história. Nunca ficam iguais. São irreverentes e, ao mesmo tempo, humildes. Preservam a capacidade de sonhar e de aprender.

Parabéns, Clandestina! Foi um privilégio ver-te encontrar o teu Legítimo Caminho.

 

 

VOZ DE MIM

 

_DSC3203_GustavoGoncalvesÉs poema com pele, poros, centros nervosos.

És olhos que vêem, choram e se espantam de alegria.

És boca que beija, grita, sorve e deita fora, coração que acelera e abranda, que dá sinal de vida e comanda a ordem das coisas.

És reflexo do amor que nos une, a mim, a ti, a todos.

És o velho, és também o novo, o prelúdio da verdade, a verdade inteira e mais além.

És o rosto do imprevisível e do instante que passou, és marca nova que fica, se multiplica e se desdobra em múltiplos acordes daquele que sou.

És allegro, molto vivace, piano, pianissimo, largo, dolce, molto dolce!

És a diluição do que não faz falta e um acrescento de mim.

És a improvisação de um corpo vivo, comandado por um coração sensível.

És o acordar de memórias e a expressão da liberdade.

És corpo que respira mais e melhor.

És os pontos nos is, o grito que salva e o amor que cura.

És espaço amplo, dentro da alma das pessoas.

És tão-só o espírito elevado de cada um.

És a mudança de rumo das coisas banais.

És mais.

 

VOICE OF ME

You are text with skin, pores, nerve centres, and eyes that see, weep and are cheerfully astonished.

You are the mouth that kisses, screams, sucks and throws away, the heart that accelerates and slows down, that gives a sign of life and commands the order of things.

You are a reflection of the love that unites us, to me, to you, to everybody.

You are the old, and also the young, the prelude to the truth, the whole truth and beyond.

You are the face of the unpredictable and of the moment that passed, you are a new mark that stays, multiplies and unfolds in multiple chords of who I am.

You are allegro, molto vivace, piano, pianissimo, largo, dolce, molto dolce!

You are the dilution of what is not needed and an addition to me.

You are the improvisation of a living body, commanded by a sensitive heart.

You are the awakening of memories and the expression of freedom.

You are a body that breathes more and better.

You are the dots in the i’s, the scream that saves and the love that heals.

You are ample space, inside the soul of the people.

You are merely the high spirit of each person.

You are the change in the course of banal things.

You are more.

ESTE ESPAÇO É MEU E ESTE ESPAÇO É TEU!

árvores gémeas

A mitologia, a literatura e as vidas das pessoas estão cheias de enredos baseados no Complexo de Édipo mal resolvido! Alguém quer um espaço que não é o seu e quem de direito não é capaz de gerir amorosa e firmemente a situação. Os papéis ficam trocados, o sentimento de culpa instala-se e acompanha-nos indelevelmente para o resto da vida ou por muitos anos. É preciso que a nossa alma se sinta sufocada, para que possamos questionar a orientação dos nossos desejos e necessidades amorosas.

Este espaço é meu e este espaço é teu!

Quem dera a todos nós que os nossos pais e/ou padrastos tivessem sabido mostrar, com atitudes coerentes e enraizadas, esta verdade tão simples e libertadora! Ter-nos-iam ajudado a sair do triângulo amoroso que teve início aos 3 anos de idade.

Se os progenitores não tiverem esta etapa resolvida, embarcam no desejo da criança, atuando os seus próprios desejos inconscientes e as suas necessidades de amor não satisfeitas. E isso aconteceu mais uma vez!

Era uma vez um menino que tinha uma irmã mais nova. Os pais começaram a dar-se mal por variadas razões. O pai era rígido e a mãe, amorosa com o seu filho querido. O menino rapidamente se transforma no homenzinho da mãe; o pai afasta-se sexualmente da mãe e é exigente com o filho. O tempo passa e o menino, agora adolescente, perde a mãe aos 18 anos. O seu amor morre e, de imediato, assume a responsabilidade pela irmã mais nova. O pai, de certo modo, deixa que isto aconteça porque entretanto já se tinha afastado do seu papel de homem da mãe, partilhando com o filho as responsabilidades que eram suas. Há claramente um confronto entre dois rivais, disputando a guarda de uma menina. O rapaz perdeu a mãe, deixa de poder gozar a fratria e busca amor e proteção, através do papel de pai, que assume perante a irmã, prolongando, sem saber, o seu Complexo de Édipo. Como vemos, o menino cresceu com um padrão de lealdade fora do sítio, aumentando a sua carência afetiva que é compensada pelo poder que detém junto de todos os elementos da família.

O adolescente cresceu e fez-se homem. Responsável, diga-se. A esposa queixa-se do paternalismo do marido e, depois de mil e uma guerras, presenciadas por dois filhos, separam-se. Os filhos são instigados por uma mãe ressentida. Ele sofre por muitas razões que poderia exaustivamente explicar. Mas o que importa dizer é que este homem, amoroso e dedicado aos seus dois filhos (um menino e uma menina), esconde deles as suas namoradas e espera, inconscientemente, que aqueles o nutram e o compensem afetivamente. Ao mesmo tempo, tem que gerir a frustração e os ciúmes das namoradas, a dificuldade de estar inteiro nas relações, a culpa. Aqui está, mais uma vez, a atualização do Complexo de Édipo, agora na relação com os filhos que, da mesma maneira, se veem armadilhados pelo mesmo Complexo, não resolvido. É óbvio que todas as escolhas feitas pelo personagem desta história são mais do que racionalizadas e devidamente fundamentadas, perpetuando a lealdade construída desde os seus três anos de idade!

Dentro deste quadro de dependência afetiva, há sérias dificuldades em dar limites e em determinar os seus próprios limites.

Tudo se agrava quando os filhos começam a dar problemas na adolescência. É preciso dar limites aos abusos de autoridade e o sentimento de culpa interpõe-se e não permite. O poder que sempre teve esvai-se por entre os dedos. É agora a vez dos filhos assumirem o controlo da situação. Nesta história, todos sentem falta de amor, disputando espaços na relação. Ninguém se larga. Ninguém segue a sua vida, ainda que a raiva cresça sufocada pelo medo de perder o único espaço de amor que se conhece…

Este homem busca terapia num momento em que sente uma tremenda solidão, perda de controlo e falta de amor. A sua alma está espartilhada. Está cansado de se sentir dividido entre amores: entre filhos e namoradas, entre estar disponível para satisfazer as necessidades dos outros e satisfazer as suas, de prazer, de descanso, de diversão, etc. O seu corpo de adulto carece de satisfação, de amor maduro e seguro. Mas a dificuldade de separação é imensa: de dizer “não” a dois filhos caprichosos, sempre que é preciso; de dizer “sim, eu sou importante, eu primeiro!”; de questionar toda uma vida e chorar pela perda da mãe, personagem central na sua história.

De mãos dadas, sigo com ele pelo caminho da consciência e das brumas. Devagar.

Vou com ele muito atrás, à procura do seu desejo de amor. Pelo caminho, tropeçamos juntos na sua resistência em deixar ir o que não lhe pertence. Sou testemunha da sua tristeza. Assisto-o na conquista da sua autonomia perdida, da sua alegria de viver…  é bem possível que demos de caras com os sonhos mais recônditos da sua alma, então afundada por tantas responsabilidades e lealdades de outrora.

É preciso que os casais sejam felizes, individuados e identificados com uma sexualidade adulta, para ajudarem a criança a separar o impulso erótico do impulso afetivo e a aprender a estar, um dia, dentro de uma relação amorosa, sem confusão, sem jogos, sem triangulações. E o/a menino/a  seguirá o seu caminho, livre para escolher, diferenciando uns afetos dos outros. Esta é a raiz da integridade. Estar inteiro num afeto, sem confusão, assumindo o espaço que é seu e as responsabilidades inerentes.

As separações são absolutamente necessárias.

Um dia, todos nós deixamos o seio materno. Deixamos o infantário, a escola primária, o liceu, a faculdade, o emprego, várias relações, deixamos para trás a pele fresca e firme da juventude, a energia que em tempos pareceu inesgotável; todos nós perdemos entes queridos e morreremos um dia. É urgente encarar a separação como algo que faz parte da nossa evolução, como uma promessa de prazer maior, de maior fluxo e vibração, de amor maior, de paz maior, como um mergulho no mar profundo e complexo do nosso Self!

Olá! Tenho três anos! Alguém me explica que não posso fazer tudo, que não posso ter tudo, que o pai é da mãe e que a mãe é do pai… apoiam-me amorosamente na frustração que sinto … protegem-me dos perigos … estão vigilantes para que a potência corporal que entretanto conquistei não me atire para um sítio sem chão … abraçam-me os dois quando preciso de afeto … e dizem-me “amamos-te muito”. E aprendo a dizer “este espaço é meu e este espaço é teu”!

Olá! Tenho 45 anos!

Este espaço é meu! Este espaço é teu! Este espaço é nosso!

 

Nota: Alguns dados da história foram alterados para proteger o direito de privacidade do cliente.

 

SIM, VALENTIM!

Apresentação1 Amor é uma ligação vital com uma fonte de vida e de alegria, quer essa fonte seja um indivíduo, um projeto, uma comunidade, a natureza ou o Universo.

A vida flui através de um espetro emocional que nem sempre é prazenteiro e que constitui o ponto de partida da nossa evolução. Não pode haver alegria se não conhecermos profundamente a tristeza; não poderá haver Amor verdadeiro se não formos capazes de nos zangar; não poderemos desenvolver a capacidade de proteção se não conhecermos o medo e o impacto das situações de sobrevivência. Por isso, o trabalho de evolução pessoal é um trabalho sobre a integração dos opostos, que nos aproxima da nossa essência que é, quanto a mim, um “apanhado” criativo da luz e das trevas. É um trabalho em direção ao Amor.

Dado que o Amor também é uma expansão do Self para incluir o mundo, a sua perda é vivenciada como uma ameaça à vida e resulta em contração e retraimento. O anseio por Amor permanece no coração, mas não pode ser realizado enquanto o medo da perda ou da rejeição persistir.

Todos os dias tropeçamos com pessoas com medo de se entregar ao Amor.

Se fomos frustrados ou profundamente feridos na nossa infância, o nosso avanço em direção a um relacionamento amoroso maduro tenderá a ser inseguro. Podemos apaixonar-nos porque o Amor é a nossa linha vital, mas a entrega poderá ser apenas temporária, uma renúncia momentânea do controlo egóico, na nossa contínua luta pela sobrevivência. À mínima contrariedade, tocam os alarmes, iniciando-se o conhecido processo de sabotagem ao Amor maduro. Essa incapacidade de nos entregarmos ao Amor, de coração aberto, jaz na raiz de todos os nossos problemas emocionais.

Maturidade é o estadio da vida em que conhecemos e aceitamos o próprio Self, em que conhecemos os nossos próprios potenciais, medos, fraquezas e manipulações e os aceitamos. Aceitação não é impotência. Significa que se assume a responsabilidade pelo próprio valor e se perde a vergonha das próprias dificuldades ou problemas e que estes servem de ponto de partida para a contínua evolução e aprimoramento, em consciência. Aceitação é uma visão amorosa e responsável de si mesmo.

Conhecer e aceitar o próprio Self é um processo em contínuo movimento evolutivo. A maturidade vai ganhando o brilho mágico que resulta do encontro entre dois seres que se comprometem mutuamente, dentro da aventura de autoconhecimento. E é por isso que o compromisso inclui uma dose de imprevisibilidade! É por isso também que a vida nos pode surpreender e conduzir a vivências extraordinariamente extáticas!

A entrega ao Amor implica a capacidade de partilhar plenamente o próprio Self com o objeto do nosso Amor. Não é uma entrega cega ao outro, mas sim uma entrega responsável às próprias emoções, na relação com o outro! Amor é uma questão de estar aberto. Isto implica estar em contacto com os sentimentos mais profundos e ser capaz de os expressar adequadamente, sem projeções.

O trabalho pessoal em direção ao Amor é um processo de abertura à Vida e esta reflete-se em olhos brilhantes, em sorriso cálido, em modos graciosos e em coração aberto.

Para abrir o coração é preciso abrir as passagens através das quais o sentimento de Amor flui para o mundo… abrir a voz para falar francamente … abrir os olhos para ver … movimentar-se em direção ao outro, com clareza de intenções.

O Amor maduro é um direito de todos aqueles que se entregam apaixonadamente à evolução pessoal e à Vida.

Feliz Valentim!

 

O MUNDO MARAVILHOSO DE ALICE

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Há momentos muito especiais, quando todas as coisas se conjugam sincronisticamente!

Na nossa Floresta, houve magia e muitas sincronicidades! A Alice, no seu mundo maravilhoso, esteve presente a inspirar-nos, a lembrar-nos de como é ser criança, de como é estar no corpo!

Na floresta do mundo dos adultos, o retorno à infância é obrigatório! Temos como missão reconstituir os caminhos do corpo e da psique, que ficaram retidos algures num momento difícil da nossa história.

Na floresta do mundo dos adultos, o retorno à infância é obrigatório! Fazemos tudo para resgatar aquele sorriso, aquela paixão, aquela fé inabalável na vida, aqueles gestos espontâneos e a total vivência do fluxo!

Na floresta do mundo dos adultos, o espírito da criança está sempre presente, como um anjo da guarda, um guia ou um sábio intemporal.

Obrigada, Alice!

POEMA DE GRATIDÃO

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Como seria o mundo se cada um de nós construísse vínculos seguros?

No meu trabalho, tenho o privilégio de conhecer pessoas incríveis que conseguem transformar as suas vidas, partindo de situações de grande fragilidade. Por muito que nós, psicoterapeutas, dominemos a técnica de conduzir as pessoas pelos seus processos de vida, temos que assumir a nossa humildade e aceitar que são elas, as pessoas, que trazem consigo o tesouro, a força, a luz. Estou grata por ter sido conduzida para os braços daqueles que a cada dia me mostram o sentido da vida e me ensinam a humildade.

É muito importante divulgar matérias positivas, histórias de pessoas que transformam alquimicamente o passado e que conseguem cruzar a linha do medo, aprendendo a valorizar o amor partilhado todos os dias.

O amor não é uma abstração inatingível, é real, é uma escolha feita por pessoas que não desistem de crescer, de se transcender a si próprias, de se comprometer com o conhecido e com o desconhecido de si e do outro, numa aventura fascinante de autoconhecimento.

Como seria o mundo se cada um de nós cultivasse relacionamentos saudáveis e felizes, construísse vínculos seguros e tivesse como prioridade a saúde emocional?

Não podemos ignorar o poder que a higiene emocional tem na qualidade de vida das pessoas, das famílias, das instituições, das empresas, da sociedade, do mundo!

É preciso reaprender a olhar, a respirar, a sentir, a fazer escolhas a partir de uma perspetiva elevada. É preciso largar crenças que nos mantêm presos na teia da vitimização e da carência. É preciso ampliar o olhar e colocar no topo da lista das prioridades a capacidade de vinculação. Não tenhamos pudor de considerar que é de amor que o mundo precisa!

O amor tem sido o tema da maior parte das canções e da poesia porque é bem possível que seja a matéria de que o Universo é feito!

Quero partilhar um poema de gratidão.

Pedro faz terapia há alguns anos e, num dado momento do seu processo, sofre um despertar. Sofrer um despertar parece um paradoxo. Mas é assim. Pela perda de algo valioso, chegou a uma compreensão do seu padrão de infelicidade e teve a oportunidade de fazer o luto do menino que já não é.

Vou transformar, em poema, o conteúdo das suas palavras e das lágrimas choradas durante várias sessões. Recordo estes momentos com enorme comoção.

Pedro pode ser cada um de nós que ouse aproveitar a sua oportunidade de ter nascido, de uma forma que faça sentido e que contribua para a construção de uma massa crítica que pode elevar o nível emocional e espiritual da humanidade.
Tenho poucas dúvidas a respeito da responsabilidade que cada um de nós tem na construção da sua realidade pessoal e do mundo que temos.

Poema de gratidão

“Bom dia, meu amor. Tenho estado a dormir profundamente.
Não tenho percebido o quanto tens estado aqui. O quanto és sábia e protetora e como é enorme a tua alegria. Preocupado em manter sempre atualizado o meu passado de menino mal amado e incompreendido, tenho projetado em ti todas as minhas expetativas infantis de que um dia alguém irá satisfazer incondicionalmente todas as minhas necessidades.

Bom dia, meu amor. Perdoa-me por ter andado tanto tempo adormecido e ter negligenciado a soberania das tuas atitudes amorosas. Tu és uma luz e, pacientemente, puseste-te na retaguarda porque sabias que eu não aguentaria o brilho das tuas ações.

Obrigado pelas refeições maravilhosas que preparaste com tanto amor, bom gosto e requinte. Obrigado pelas tuas carícias, pela mulher sensual e feminina com que me brindaste todos os dias. Como é possível eu não ter reparado que, para além do grande ser que és, ainda és a mais linda e sensual das mulheres que algum dia se cruzou no meu caminho!?

Obrigado, meu amor, por te teres zangado comigo e me teres batido com a porta. No dia em que saíste da minha vida, apercebi-me do vazio que é viver sem ti. E que todas as lamúrias que te fiz eram a minha alma infantil a lamentar-se por tudo o que não teve. Perdoa-me. Tu deste-me tudo aquilo que a minha criança não teve. Mas a minha carência é tanta que nada do que me deste chegava. Aproveitei as tuas fraquezas e fragilidades para te demonstrar que eras insuficiente e que eu merecia mais e melhor!

Como é fácil ser vítima! Nada é da nossa responsabilidade! Todos nos devem!
E que tédio é, afinal, a vida desta maneira! O poder resvala devagar por entre os dedos, enquanto envelhecemos e perdemos as melhores oportunidades!

Obrigado, meu amor, por me teres batido com a porta. Esse foi o primeiro dia em que entrei na idade adulta. Ensinaste-me que o tempo não volta atrás e que para termos amor temos que curar as nossas próprias feridas e amar-nos a nós próprios. Só assim se aprende a dar valor a uma companheira como tu.

Hoje, honro cada cicatriz que tenho, dou alta aos meus pais que deram o que tinham e o que sabiam. Hoje, compete-me a mim fazer melhor.

Obrigado, meu amor, por me teres batido com a porta e teres lançado em mim a semente do amor próprio e da gratidão.

Obrigado pela tua solidariedade, pelo teu olhar de mulher atenta, pela alegria que geras à tua volta e pelo prazer que me fizeste sentir!

Perdoa-me por não ter honrado os teus defeitos, as tuas dificuldades, por não te ter dado a proteção que precisavas. Por não ter sido o companheiro responsável que tu mereces.

Obrigado, meu amor, pela lição de força e de coragem que me deste. Por me teres mostrado que amor também é dar limites com a contundência necessária para acabar com a violência psicológica inconsequente! Obrigado pela lição de vida que me deste, ainda que esteja a sofrer, em cada célula do meu corpo, a tua ausência.

Resta-me pensar que, se algum dia vivi este amor, é porque há em mim a centelha brilhante de vida que um dia irá renascer.
Amo-te.”

Nota: o nome do personagem da história é fictício e estão salvaguardadas todas as regras de sigilo profissional.

 

CONTO DA CHAVE DOURADA ©

EM JEITO DE PREFÁCIO

Através de uma linguagem fantástica de contos de fadas, esta estória fala-nos do processo de transformação psicológica e espiritual de uma mulher, a partir de uma relação amorosa importante e conturbada.

Os protagonistas deste romance conhecem-se num grupo psicoterapêutico (Floresta Mágica). A afinidade entre as suas histórias de vida marca o início de uma relação de amizade que, depois, se desenvolve até à encruzilhada do amor.

Paralelamente à morte inesperada do Grande Rei (pai da Princesa, cujo papel tinha sido marcante no desenvolvimento da sua personalidade e das suas escolhas amorosas), os seus caminhos separam-se e, a partir daí, a Princesa dos Vulcões nunca mais volta a ser a mesma. Mergulhada num mar de emoções, passa por experiências de hipnoterapia e visualização criativa (Prado de Açucenas) que a conduzem aos lugares mais recônditos da sua psique, aprofundando ainda mais o seu conhecimento interior.

O desenrolar intrigante e paradoxal da relação entre os dois personagens parece ser a expressão externa do mundo inconsciente da psique da Princesa, carregado de velhos arquétipos masculinos e femininos que, pouco a pouco, se vão integrando. Através do jogo de espelhos, que são todas as relações, a Princesa vai conhecendo um pouco melhor a sua alma e o significado do verdadeiro amor.

Toda a história é marcada por coincidências, sincronicidades e sinais que levam a Princesa a considerar a existência de uma conexão invisível e desconhecida entre os acontecimentos e, mais concretamente, entre si e o Rei da Chave Dourada.

Percorrendo o caminho do amor e do ressentimento de separação, e recorrendo a diversas experiências terapêuticas, a Princesa vai-se apercebendo da coexistência dos opostos, dentro e fora de si, e da magia que rege a própria vida. Muitas vezes, contra as próprias evidências, a intuição passa a ser a candeia que ilumina os seus passos, ampliando o seu olhar sobre a realidade.

Findo o processo de individuação, a Princesa reconhece o verdadeiro sentimento que a une ao Rei da Chave Dourada, depois de integradas e compreendidas todas as desilusões.

O sonho sobre a morte da Grande Mãe (mãe da Princesa) é extremamente simbólico no que diz respeito à verdadeira transformação. Na psique da Princesa, passa a existir uma figura feminina capaz de a orientar na escolha de um novo padrão de relacionamento amoroso.

O conto termina quando, finalmente, tudo pode começar de uma forma totalmente nova.

Num hino ao amor e ao sonho, este conto revela que o sofrimento também pode ter beleza e que a transformação se dá, exatamente, a partir do elemento desarmonioso da personalidade. Neste caso, todas as desilusões se deveram ao lado sonhador e idealista da Princesa, mas só a partir dele foi possível percorrer todos os caminhos que a conduziram à integração dos seus opostos.

O sonho é o elemento transformador, a partir do qual a realidade e o amor poderão ser continuamente recriados.

 

I ENCONTRO DO DESTINO: A MAGIA E O FEITIÇO  

CAPÍTULO 1: ENCONTRO MÁGICO NUMA BOLHA AZUL E BRILHANTE

 

Era uma vez um menino e uma menina que se encontraram numa Floresta Mágica, onde se reuniam pessoas com as mais diversas particularidades. O que havia de comum entre elas era o desejo de encontrarem o seu caminho de regresso a casa.

Consta que quando alguém entra naquela Floresta nunca mais volta a ser o mesmo porque a atmosfera é de tal modo intensa que os velhos pensamentos se baralham todos… e, para voltarem a ter sentido, chega a demorar anos. Neste lugar mágico, todos colaboram na procura do caminho de cada um, partilhando tesouros e segredos que cada menino transporta num lugar sagrado dentro de si. Correm-se muitos riscos e aprende-se a amar. Às vezes, acontece um inesperado feitiço.

A menina, a quem chamaram Princesa que dançava com os Vulcões, já lá estava, havia muito tempo, quando chegou o menino Rei que brincava com o Fogo. Havia quem lhe chamasse Rei das Viagens. Outros havia que lhe chamavam Rei da Chave Dourada. Os que achavam isto percebiam que este menino apostava tudo o que tinha para ser feliz, escolhendo, muitas vezes, o caminho mais difícil e menos linear da Floresta. Por isso, era Rei.

Num dia de muitas emoções, chegou o menino Rei de porte majestoso, com um lindo sorriso que lhe iluminava o rosto. A menina Princesa, habituada a sentir as vibrações dos vulcões, percebeu de imediato que dali vinha mudança, força, ousadia. O menino era belo e sedutor, delicado e pueril. Era menino e era Rei. Havia naquele olhar uma certeza de vitória que não deixava dúvidas. Dizem os sábios que as certezas do coração produzem reflexos de gratidão no olhar. E ela via isso. Havia já, naquele olhar, o festejo antecipado da vitória. Algo familiar.

Anos mais tarde, veio a saber-se que o Rei da Chave Dourada também demorara o seu olhar na Princesa dos Vulcões. Habituado a grandes conquistas, com sabores e dissabores sobre a matéria, resolveu disfarçar o seu olhar interessado, não fossem os propósitos daquela viagem não ser concretizados. Ele evitava o contacto com ela e ela mantinha-se discreta e pouco expansiva na manifestação do seu entusiasmo e curiosidade. Contudo, havia sempre um sorriso ou um olhar que confirmavam a presença um do outro. Soube-se também que ambos ficavam ansiosos enquanto o outro não chegava à roda das partilhas.

Iniciou-se um ciclo novo na Floresta. Os cheiros tornaram-se mais intensos. Os sons, mais variados. A luz tinha outro brilho. Os silêncios deixavam que se ouvisse o pulsar do coração daqueles que se aproximavam de um terreno fértil, mas movediço, onde se encontravam, simultaneamente, os fantasmas do passado e o caminho de regresso a casa.

A Princesa pressentia, uma vez mais, a fumarola de um vulcão…agora, na presença de alguém que percebia o que se estava a passar.

Velhas recordações tomaram conta da menina Princesa que, por um passe de mágica, se transformou novamente numa criança frágil, no meio de uma tempestade de lava e lágrimas. A Feiticeira da Floresta acorreu a segurá-la nos braços, dando-lhe o calor que tinha faltado, e os duendes protetores rapidamente iniciaram a ventania das cores. Este fenómeno acontecia, de tempos a tempos, sempre que as histórias dos meninos se tocavam…

O ar quente e aromático da Floresta desenhava círculos coloridos, envolvendo os meninos que conheciam as mesmas dores e as mesmas alegrias, as mesmas deceções e as mesmas esperanças. Assim foi, mais uma vez. A Princesa dos Vulcões e o Rei da Chave Dourada ficaram dentro de uma bolha intensamente azul e brilhante, onde o tempo voltava muitos anos atrás para transformar a dor em cicatriz e a cicatriz em ternura.

Muitos dias seriam necessários para essa transformação se dar… mas, por motivos de força maior, o menino Rei teve que abandonar a Floresta, deixando, contudo, um espaço cheio da sua presença no coração da Princesa. Sabia que não estava só. Alguém, como ela, conhecia a violência do vulcão e a força da esperança… A ventania das cores tinha o poder de criar afinidades entre os meninos, que nem a distância conseguia desvanecer.

Cientes da missão importante do menino Rei, os Feiticeiros da Floresta deixaram que ele fosse, levando consigo mensagens de cada menino. Havia no seu olhar um misto de tristeza e de certeza de ter que partir… A Princesa dos Vulcões não gostou, mas sabia do que seria capaz se precisasse dele para continuar a sua caminhada.

A Floresta Mágica era cheia de mistérios e de códigos interessantes para decifrar. Seria preciso estar-se bem atento para não se deixar escapar os sinais que conduziam os meninos ao seu caminho de regresso a casa.

Viva como uma sardinha, a Princesa dos Vulcões cedo percebeu que a sua temporada na Floresta estava quase a chegar ao fim e que o resto do seu caminho tinha de ser feito sozinha, noutras florestas, talvez. Florestas sem duendes protetores nem feiticeiros bondosos, para que pudesse, finalmente, por à prova a sua capacidade para vencer o feitiço, lançado, um dia, pela bruxa verde!

Desde tenra idade que aprendera a encurtar os caminhos longos, a saltar por cima dos obstáculos, a correr atrás dos sons intrigantes, a identificar os cheiros inebriantes, a alcançar o horizonte com o olhar… e, por tudo isto, resolveu ir atrás do seu companheiro da bolha azul e brilhante!

Enquanto ele estava longe, a Princesa fazia magias com as suas danças para que o seu amigo não voltasse a brincar com o fogo e não perdesse a referência do que o levara até à Floresta Mágica. Ela conhecia o perigo dessas brincadeiras: a cabeça ficava à roda, com muitos pensamentos fantásticos e rápidos, e os pés levantavam-se do chão. Nesses momentos, era como se o menino Rei voasse para um planeta sem chão e sem pistas que o ajudassem a encontrar o seu caminho de regresso a casa.

No entanto, a Princesa dançava com muita confiança na boa estrela do menino Rei.

E, assim, começou uma amizade alegre e cúmplice entre a Princesa que dançava com os Vulcões e o Rei da Chave Dourada.

CAPÍTULO 2: PRIMEIROS SINAIS DE FOGO – O DESPERTAR DO FEITIÇO

 

Soube-se, um dia, que o Rei da Chave Dourada tinha chegado da sua longa viagem…

Tímida como sempre, a Princesa dos Vulcões teve receio de convidar o menino Rei para um banquete, até porque ele não esperaria nunca tal coisa! Sorte, a da Princesa, porque havia outras meninas que também tinham saudades do Rei e que estariam dispostas a juntar-se a ela para tal ocasião! Para as amigas, ele era o Rei das Viagens… e, assim, só a Princesa saberia do significado daquele reencontro… onde, ao fundo da sua mágica intuição, se via uma linda Chave de Ouro que abriria a porta sagrada.

Dizem os sábios que a timidez não é mais do que o medo de uma enorme vibração.

No caso da Princesa, todos os meninos que a faziam vibrar faziam-na recordar-se da força mágica e terrível do vulcão.

Há muitos anos atrás, a Princesa tinha aprendido que o amor verdadeiro e intenso podia ser perigoso, mas a sua passagem pela Floresta tinha-a ajudado a perceber que isso não era verdade; fazia apenas parte de um feitiço que tinham feito à Princesa na hora do seu nascimento e que, por já ser experiente a dançar com os vulcões, saberia muito bem, daqui para a frente, pressentir todas as fumarolas perigosas. E, segura de si, lá se aventurou a descobrir a magia do Rei da Chave Dourada, envoltos os dois, durante meses, na bolha azul e brilhante.

De sonho em sonho, de segredo em segredo, atravessavam as suas histórias. Cada um parecia ser o porto seguro do outro, num momento tão difícil para os dois: ambos tinham perdido algumas das suas ilusões, alimentadas durante anos, e isso provocava uma grande dor.

Por baixo das estrelas, num campo onde se ouviam as cigarras, faziam muitas confissões e trocavam carícias que faziam sarar muitas feridas e provocavam sorrisos na alma.

Ao longo de um mar azul, faziam longas caminhadas que davam muita vitalidade… de tal forma, que a Princesa e o Rei começaram a sentir uma alegria enorme a invadir-lhes o corpo. Era como se da pele começassem a sair bocados de risos que atraíam as atenções de toda a gente. A sensação era tão agradável, que queriam sempre repetir…

A música fazia parte de muitos dos seus momentos. Ela adorava dançar e ele não se fazia sentir rogado. Espontaneamente, dançava também. Nessas alturas, voltava sempre a ventania das cores. Ambos se encontravam numa enorme cumplicidade. Alegria tranquila e brincalhona.

Quando era preciso coordenarem tarefas, lá estavam eles! Não era preciso pedir. Bastava um movimento e um olhar atento… voltava a ventania das cores.

Repetiam-se as caminhadas, a conversa sobre velhos medos, as carícias, os banquetes… as caminhadas outra vez, a dança, a alegria, os risos a saírem da pele, os sorrisos das crianças, a ternura do olhar, o olhar mais ardente….o MEDO.

De cada vez que surgia o medo, a Princesa iniciava a dança imaginária com os Vulcões, mas, desta vez, não fugiu. Começou uma dança lenta e atenta, mas decidida a chegar ao fim. Sobretudo, atenta para perceber se a magia era verdadeira ou se continuaria a tratar-se de um feitiço da bruxa verde.

De cada vez que surgia o medo, o menino Rei iniciava a sua brincadeira com o Fogo, mas, desta vez, com mais cuidado para não incendiar a amizade que florescera entre si e a Princesa dos Vulcões.

Tudo indicava que o caminho de regresso a casa de cada um passaria por viver um amor verdadeiro e eterno, onde houvesse um grande colo que sarasse todas as feridas, que fosse tranquilo e, ao mesmo tempo, mágico e intenso, onde houvesse espaço para crescer e ser verdadeiro, onde houvesse espaço para muita liberdade.

Entre o desejo de estarem juntos e o medo nasceu uma força tensa que fez com que os meninos tivessem que abrir o coração.

O primeiro susto da Princesa deu-se quando tudo indicava que o Rei a fosse abraçar e partilhar consigo a Chave Dourada e, pelo contrário, lhe desconfirmou tudo o que ela tinha visto no seu olhar e nos seus gestos.

A Princesa dos Vulcões estava certa de que amava o Rei da Chave Dourada.

O Rei da Chave Dourada queria resolver muitas das suas loucuras de brincadeiras com o fogo e viagens longínquas para, um dia, estar disponível para o seu grande amor que jurava não ser ela. Mas não queria que a Princesa se ausentasse da sua vida.

E, assim, iniciou o menino Rei uma série de brincadeiras com o Fogo. Estas brincadeiras eram mágicas e fascinantes, por vezes; outras vezes, eram inesperadas e desconcertantes. Num momento, ele parecia querer partilhar com ela a Chave; no momento seguinte, tudo não passara de uma ilusão. Como se fossem reis diferentes: um Rei da Chave Dourada, terno e intenso, e um Rei que brincava com o Fogo, distraído e frio. A Princesa dos Vulcões acreditava na ventania das cores e nos poderes da Floresta Mágica, apesar do medo, e decidiu esperar. 

Para que o tempo pudesse transformar a dor em cicatriz e a cicatriz em ternura, era necessário permanecer-se na bolha azul e brilhante, criada pela ventania das cores da Floresta Mágica. Seria preciso muito tempo. Mas, mais uma vez, o menino Rei teve que se ausentar para uma longa viagem, decisiva para o encontro do seu caminho de regresso a casa. A Princesa dos Vulcões acreditava na ventania das cores e nos poderes da Floresta Mágica, apesar do medo, e decidiu esperar. E esperou, sozinha, dentro da bolha azul e brilhante.

CAPÍTULO 3: A MORTE INESPERADA DO GRANDE REI

 

“A Floresta Mágica era cheia de mistérios e de códigos interessantes para decifrar. Seria preciso estar-se bem atento para não se deixar escapar os sinais que conduziam os meninos ao seu caminho de regresso a casa”. Esta era a voz da sabedoria da Floresta, que, desde o início, a Princesa dos Vulcões tinha seguido. Até aqui, identificara a magia do amor. A partir de agora, era preciso estar atenta aos sinais perigosos do feitiço.

Enquanto esperava pelo seu Rei, a Princesa que dançava com os Vulcões entreteve-se a recordar muitas estórias de sábios antigos. Numa delas, leu que o antídoto para o feitiço está escondido mesmo por baixo do chapéu da bruxa verde e que é preciso coragem para voltar a dançar ao som do feitiço, conhecer-lhe os truques, embebedar a bruxa verde, para que nunca mais consiga tocar no bem precioso que é o nosso coração, e roubar-lhe o antídoto. Mas, para isso, é preciso arte e muitos anos de Floresta Mágica. E muito tempo de permanência nas bolhas coloridas, criadas pela ventania das cores. Mesmo assim, dizem os sábios que não devemos desvalorizar os anos de experiência de um feitiço e contar que a bruxa, ainda que desmascarada, conseguirá sempre fazer sangrar um bocadinho. Estando atentos a tudo isto, e recetivos a alguma dor, é possível encontrar o antídoto e estar, finalmente, disponível para o verdadeiro amor.

Convicta da difícil missão, a Princesa dos Vulcões fortaleceu-se com inúmeras poções mágicas feitas de lealdade, paciência e muita atenção aos sinais…

Quando não chegavam notícias do menino Rei, o céu toldava-se de nuvens e chovia. Às vezes, chovia durante muito tempo. Chegava a trovejar… até a Princesa desistir de esperar pelo sol. Quando isto acontecia, nascia o sol e chegavam notícias do menino Rei. Parecia que era de propósito, para ela aprender a aceitar os ritmos da natureza e, com isso, perceber melhor os movimentos do seu companheiro da bolha azul e brilhante.

Nesta observação atenta e persistente das movimentações do menino Rei, a Princesa dos Vulcões foi sentindo, dentro de si, inúmeras sensações diferentes. Umas, quentinhas, que suavizavam o olhar e traziam bons sonhos. Outras, arrepiantes, que desenhavam imagens indesejadas no pensamento. Parecia uma brincadeira com o fogo. Algo excitante e imprevisível, ao mesmo tempo.

Tudo o que a menina Princesa sabia era que o Rei da Chave Dourada estava a passar tempos difíceis, que gostava muito de receber lembranças de esperança da sua amiga Princesa e que, com muito trabalho e dedicação, parecia ter vencido uma batalha importante. Anunciou, com alegria, que o sol começara a brilhar naquele país distante e que só voltaria definitivamente para a Floresta Mágica quando todos os passos dessa viagem tivessem sido dados. Entretanto, anunciou uma visita à Princesa dos Vulcões, prometendo caminhadas alegres como antigamente.

A Princesa quase não dormia de excitação pela chegada do Rei da Chave Dourada. Os risos começaram a sair da pele outra vez e só pensava no momento em que voltaria a abraçá-lo. Haviam de sentar-se os dois debaixo das estrelas e contar todas as novidades e falariam de sentimentos. Voltariam a ter longas conversas e a trocar carícias dentro da bolha colorida, assistindo à dor transformar-se em cicatriz e esta em ternura.

De repente, voltava o susto. O tempo parecia ter parado. O medo parecia tão grande como o tamanho do tempo – longo e profundo. Voltavam os sonhos com imagens indesejadas. E persistiam.

E, neste vai-vem de sentimentos contraditórios e de uma longa espera, a Princesa foi surpreendida por um acontecimento inesperado e muito triste. Num dia de muitas danças, chegou a notícia de que o Grande Rei tinha partido para nunca mais voltar. Com ele, a Princesa tinha aprendido tudo sobre risco e ousadia, sobre magia e criatividade, sobre o prazer de olhar para o horizonte e voar, sobre festejos antecipados de vitória. Com ele, aprendeu que o impossível quase não existia e que nesta vida era preciso viver intensamente. Com ele, aprendeu também a ter muitos enganos, a acreditar nas ilusões, a fingir que tudo era possível, até vencer a luta contra um gigante. Por ele tinha esperado sempre, anos a fio. Esperava porque o Grande Rei era genialmente imprevisível. Nuns dias trazia o sonho, noutros, a tempestade que o destruía. O problema é que ela nunca sabia quando chegava uma coisa ou outra. Por isso, esperava. Esperava que um dia terminasse a tempestade e o sonho se tornasse realidade. Esperava que, um dia, ele a abraçasse, sem medo. Das mãos dele, bebeu o feitiço da bruxa verde.

O Grande Rei partiu, sem aviso prévio. Ele tinha prometido que se despediria da Princesa, antes da Grande Viagem. Mas partiu, imprevisível como os vulcões.

Fez-se um silêncio triste no coração da Princesa. Restava-lhe chorar nos colos amigos e esperar pelo abraço quentinho do seu companheiro da bolha azul e brilhante.

CAPÍTULO 4: SEPARAÇÃO

E acontecera o tão esperado encontro…

O dia trazia nuvens e ameaços de tempestade. A atmosfera estava densa e, o céu, de um tom cinzento. Ao longe, ouvia-se o barulho surdo de um trovão que não havia meio de se expressar. Nem chovia nem o céu explodia os seus raios. Habituada a pressentir as vibrações de um vulcão, a Princesa logo se agitou. E, generosamente, a bolha azul e brilhante a aconchegou mais e mais, reduzindo o seu espaço para lhe dar contornos e proteção.

À medida que o menino Rei se aproximava, a Princesa dos Vulcões ia percebendo que algo tinha mudado. E, de repente, sem aviso prévio, em vez das velhas caminhadas e do regresso à bolha azul e brilhante, o menino Rei anunciara que tinha escolhido outra bolha, de uma cor diferente, de outra floresta do tal país distante. Para essa bolha escolheu como companheira outra princesa que, entretanto, aparecera ali de rajada e com quem, em tempos difíceis de puro feitiço, ele já tinha partilhado uma longa caminhada.

Parecia um sonho mau.

As nuvens cansaram-se de estar ali, escuras e densas, e, com muita força, começou a chover e a trovejar. Como uma grande limpeza do céu imenso. A tempestade durara semanas.

Lentamente, o sol foi aparecendo e secando as folhas das árvores e o chão enlameado. A atmosfera ficara mais leve e, num doce sussurro, uma voz se ouvia de dentro do coração da Princesa:

“Escolhemos o que precisamos de escolher para ir mais além no nosso crescimento e riqueza interior. Por isso, podemos chorar o engano e, depois, aprender com ele mais uns parágrafos do grande livro da vida. Sempre inacabado… é esse o feitiço.”

Esta voz soara como um bálsamo para a alma. Nada estava perdido. É este o mistério da procura difícil do caminho de regresso a casa. As respostas surgem da maneira mais imprevista… e é preciso estar-se muito atento aos sinais.

Partira o Grande Rei e, com a mesma imprevisibilidade, o Rei da Chave Dourada.

O Rei da Chave Dourada cumpriu uma missão importante na vida da Princesa que dançava com os Vulcões. Com ele, voltou a reviver a magia e o fascínio que aprendera com o Grande Rei. Com ele, teve o privilégio de voltar a dançar com o feitiço, para descobrir o antídoto.

A Princesa aprendeu que:

Nunca mais vai querer ficar sozinha, à espera do imprevisto, dentro de bolha nenhuma, seja qual for a cor.

Que a permanência é o antídoto para o feitiço e que a magia só é verdadeira se puder ser vivida a dois.

Que a verdadeira magia tem raízes e é feita de partilha, sem medo.

Que o medo e o amor estão em polos opostos e que um exclui o outro.

Do feitiço, guarda o sorriso lindo do menino Rei, a sua curiosidade e desejo de aprender, a sua ânsia de alcançar a Chave Dourada. Guarda os rasgos de ousadia e a intensidade. Guarda a esperança. Guarda também a gratidão pela sua ajuda preciosa na busca fantástica do seu caminho de regresso a casa.

Ao deixarem de partilhar a bolha azul e brilhante, o menino Rei e a menina Princesa continuarão o seu caminho.

Ela passará a partilhar outras bolhas, com outros meninos, até encontrar o seu verdadeiro Rei da Chave Dourada.

E o menino Rei continuará as suas viagens, revivendo o seu feitiço as vezes que forem necessárias, até encontrar o seu caminho de regresso a casa.

Será que algum dia a Princesa e o menino Rei voltarão a encontrar-se?

Dizem que, no coração da Princesa dos Vulcões, há um terreno sagrado com muitas sementes de afeto por todas as pessoas importantes que a ajudam a percorrer a sua caminhada. Dizem também que o menino Rei, apesar de não permanecer muito tempo na mesma bolha de amor e crescimento, se lembra muitas vezes das pessoas que vai deixando para trás… E que só não permanece porque corre com pressa atrás do futuro e que, no futuro, tem frequentemente saudades do que deixou no passado.

Por tudo isto, é natural que um dia possam encontrar-se numa bolha luminosa e tranquila, conversando longamente sobre o fantástico feitiço que é o grande livro da vida.

 

II PORTAL PARA A TRANSFORMAÇÃO

CAPÍTULO 1: SONHO INICIÁTICO – MORTE E RENASCIMENTO

 

Com o desaparecimento do Rei da Chave Dourada, a Princesa partiu, sem dar conta, para uma grande viagem.

À medida que caminhava em direção à velha casa, ia percebendo que as paisagens eram totalmente novas e que os trilhos não eram os mesmos. Nos primeiros tempos, andou meio perdida, procurando avidamente reconhecer os lugares e as pessoas, as cores e os cheiros, os sons, as sensações e os sabores. Nada vibrava como antigamente e a solidão tomou definitivamente conta da Princesa dos Vulcões.

Exausta, caiu num sono profundo, resvalando por uma falésia verdejante que terminava num Prado cheio de Açucenas e Lagos de água fresca.

Esse lugar era ainda mais transcendente que a Floresta Mágica e, em vez de duendes e feiticeiros bondosos, havia uma mulher madura cheia de sabedoria que a ajudou a descobrir uma nova realidade dentro de si. Era tudo muito estranho porque parecia que a Princesa tinha duas vidas. Uma, material, com afazeres próprios de quem tem um corpo e, outra, espiritual, com novas sensações, novas fontes de energia, que lhe permitiam um profundo conhecimento interior. Nesse lugar, havia pessoas envoltas de luz e com um magnetismo fora do comum. Os cenários mudavam rapidamente e as vivências da Princesa eram as mais extraordinárias.

Perante o seu espanto, a Sacerdotisa sossegou-a, explicando-lhe que o seu encontro com o Rei da Chave Dourada tinha-a conduzido a um Portal e que a sua vida nunca mais seria a mesma. Daqui para a frente, iria tomar consciência de muitas memórias que estavam alojadas nas células do seu corpo e que falariam da sua verdade. E, pouco a pouco, iria perceber que nada acontece por acaso, que tudo obedece a uma ordem e que ela, Princesa dos Vulcões, não estava só e tinha uma missão a cumprir. Além disso, passaria a agir com base na sua mágica intuição e iria ser capaz de captar informações provindas de sítios distantes.

Para que tudo não parecesse demasiado fácil, a Sacerdotisa foi dizendo que esse trabalho requeria muito investimento e que a Princesa iria atravessar muitos obstáculos impostos pelos seus desejos e impulsos vorazes, duvidando frequentemente da sua intuição. A realidade não é sempre o que parece, mas as viagens mágicas também não podem ser traduzidas à letra. A Princesa dos Vulcões precisaria de aprender a desapegar-se, a esperar, a ler os sinais e a confiar no curso da vida.

A atmosfera do Prado não era como a da Floresta Mágica, intensa e bafejada pela ventania das cores. Era tão leve, tão etérea que era possível atravessar oceanos e galáxias, sem nunca sair do mesmo lugar!

Dadas as explicações iniciais, a Sacerdotisa guardou o seu Manuscrito Mágico e retirou-se.

Muito devagar, a Princesa dirigiu-se a casa, com os olhos postos no céu, envolta por uma luz violeta e muito brilhante.

E, nisto, soprou uma leve brisa que, suavemente, transformou o dia em noite. A Princesa adormeceu, dando-se início ao grande ritual de iniciação.

Ao fundo havia um cenário de morte, negro, onde o Grande Rei se esfumava. Mais perto, abria-se um cenário de luz, onde se encontravam a Princesa que dançava com os Vulcões e o Rei da Chave Dourada. O clima era de muita tranquilidade. Tratava-se de uma cerimónia solene. Ele vestia-lhe uma túnica vermelha e ela vestia-lhe uma túnica branca.

Desse reino mágico, chegava a informação de que a Princesa jamais voltaria a entregar-se aos velhos padrões e que, se um dia o Rei da Chave Dourada voltasse, teria que vir completamente descontaminado de todos os feitiços. Inebriada pelo sonho, a Princesa compreendeu que iniciara um profundo processo de transformação e que, no seu interior, os Reis deixariam de ser mágicos e imprevisíveis e passariam a ser outra coisa que ainda não sabia, mas que daí surgiria uma nova vida cheia de criatividade e força.

Apesar de leve e etérea, a atmosfera do Prado de Açucenas tinha uma força imensamente transformadora e, como tal, era necessário continuar as suas tarefas materiais e a visitar os velhos amigos, para que a verdadeira transformação se pudesse revelar.

O que é certo é que todos começavam a perceber que a alegria da Princesa tinha dado lugar a uma tristeza profunda e, ao mesmo tempo, a uma serenidade distante. No fundo dos seus olhos, acendiam-se velas e queimava-se incenso e adivinhava-se um desejo de recolhimento.

Alguns amigos mais curiosos desejavam saber o que se estava a passar, mas, depois de muitas tentativas de explicação, a Princesa desistia de contar a sua história porque percebia que havia coisas que não se explicavam. Sempre que ela ousava queixar-se de que tinha saudades do Rei da Chave Dourada e que ele, um dia, iria aparecer vestido de branco, assustados, alguns amigos desatavam a dizer-lhe coisas num dialeto racional e frio.

Assim, desistiu de se expor, continuando as suas incursões pelo mundo fantástico do auto-conhecimento. Recusava-se a aceitar que, por muito bem que lhe quisessem, lhe tentassem destruir os sonhos e desqualificassem as suas novas descobertas. Ela sabia que dentro de si algo estava a renascer e que, nesse cenário, existia um Rei e uma Rainha que, um dia, partilhariam a Chave Dourada. Para isso, era preciso ser persistente e deixar que a Princesa percorresse os caminhos necessários.

Ainda por cima, a Sacerdotisa estava sempre a recordar-lhe que estivesse atenta às ilusões porque, neste caminho mágico, era muito fácil fazer deduções erradas e a tentação de encurtar caminho era demasiado grande! Tudo isto fazia parte do processo de crescimento e toda a gente sabia que não há parto sem dor!

E, assim, a Princesa resolveu calar-se.

Para não rebentar de solidão, elegeu uma ou outra amiga mais bruxinha, a quem contava coisas de vez em quando, e começou a escrever contos sobre as suas experiências fantásticas.

 

CAPÍTULO 2: ENCONTRO COM O DESAPEGO

 

Por trás de um dos Lagos, ergueu-se uma montanha enorme. Uma voz convidou a Princesa a subir e esta, sem qualquer dificuldade, subiu-a a correr. Demorou algum tempo a escolher um lugar para se sentar porque o pico da montanha era esplendoroso, mas muito desconfortável. Lá encontrou um socalco simpático, sentando-se a apreciar a imponência da paisagem, quando a voz da Sacerdotisa lhe anunciou a presença de um Mestre.

Perturbada com a imagem do Rei da Chave Dourada, a Princesa dos Vulcões desatou a esfregar os olhos, julgando estar a delirar. Não podia ser ele, o Mestre nem o símbolo da sabedoria, depois do descuidado que tinha tido com ela. Resolveu, então, usar dos seus poderes de aprendiza de Feiticeira e transformou-o num mestre velho de barbas brancas. Esta imagem durou apenas uns segundos, voltando a impor-se a presença forte do Rei da Chave Dourada. A voz da Sacerdotisa tranquilizou a Princesa, dizendo-lhe que não podia duvidar da sua intuição e que os nossos mestres são todos aqueles que nos marcam profundamente e que acordam em nós memórias, sonhos e ideais. São também aquelas pessoas que nos provocam dor para nos ajudarem a ver o espelho da nossa própria fealdade.

A Princesa sossegou e deixou-se conduzir pela visão do Mestre da montanha.

O Rei estava num plano inferior, olhando para ela como se fosse uma Rainha, intocável. Sem hesitar, a Princesa desceu, colocando-se ao seu nível, e disse-lhe:“Não sou Rainha. Sou uma simples Princesa e tenho sentimentos. Não há razão para ficares aí em baixo”. E segurou-lhe as mãos.

O Mestre assustou-se, mas, gradualmente, foi ficando mais tranquilo porque as mãos da Princesa eram firmes e cuidadosas. Ao mesmo tempo que as Açucenas exalavam o seu perfume, o olhar do Rei foi ficando amoroso e intenso e, determinado, respondeu: “Tenho que seguir o meu caminho e viver muitas coisas.Um dia, quero ser capaz de atingir o cume da montanha. Não quero que sejas tu a descê-la.”

A Princesa dos Vulcões compreendeu e deixou-o ir, mais sossegada e segura. Desceu a montanha a correr, mais livre, com muito amor dentro dela.

Meio zonza, acordou com a água corrente do Lago, sussurrando-lhe sabiamente que era preciso confiar no curso da vida e que não adiantava correr atrás das borboletas porque são as borboletas que escolhem o jardim em que querem poisar.

Desde aí, a Princesa resolveu viver intensamente, procurando libertar-se do seu apego ao Rei da Chave Dourada e experimentar o caminho dos vales e das grutas onde se encontravam pessoas diferentes de si. Durante uns meses, viveu num reino que não era o seu, em que ninguém sabia que ela era Princesa e que gostava de subir montanhas. Nesse reino, conheceu pessoas muito loucas e criativas que faziam acrobacias no ar e que escalavam falésias perigosas.

No princípio, a Princesa ria e entregava-se às loucuras dessas pessoas, julgando ter encontrado o caminho para a liberdade.

Os dias corriam velozes. O seus novos amigos não a largavam, sondando-lhe a alma aventureira e romântica…Pouco a pouco, a Princesa foi ousando entregar o seu corpo a novas aventuras, recordando-se inevitavelmente dos tempos em que saíam risos da sua pele… Julgando ser capaz de reviver esse tempo, entregou-se definitivamente à loucura do prazer, trocando beijos e muitas danças com aquelas pessoas diferentes dos vales e das grutas.

Nos momentos em que parava e descansava das novas brincadeiras, parecia ouvir um cântico longínquo de lágrimas tristes e a vívida imagem do Rei da Chave Dourada desenhava-se no seu pensamento. Meio a dormir e meio acordada, a Princesa não percebia se era a sua própria tristeza a querer expressar-se ou se seria a do Rei da Chave Dourada. Como estaria ele?

E, envolta numa certa nostalgia, deixava-se dormir, esperando que o dia acordasse alegre outra vez.

 

CAPÍTULO 3: A GESTAÇÃO DO AMOR

 

Apesar dos risos e das novas aventuras, a Princesa foi invadida por uma enorme saudade.

Com medo de que tudo voltasse à estaca zero, correu a pedir ajuda à Sacerdotisa que a esperava com um abraço enorme e um olhar cheio de sabedoria. “Querida, não penses que o teu caminho é fácil, mas não tenhas medo das tuas emoções, muito menos da saudade! A saudade ajuda a abrir o coração e engrandece a tua alma. Queres ir um pouco mais além?” – disse. “Quero. Se quero!” – retorquiu a Princesa.

Estendida no Prado de Açucenas, fechou os olhos e acordou numa praia lindíssima, cheia de coqueiros. Uma menina de cabelos de oiro ria e corria de braços abertos em direcção à Princesa. Esta sentiu um amor enorme. Estava deitada na areia quente e a menina aproximou-se. De repente, deixou de a ver, mas o seu ventre encheu-se de uma nova energia. A Princesa sabia que a menina de cabelos de oiro estava aconchegada, aninhada na sua barriga, mas tinha deixado de a ver. Apenas a sentia, dentro do seu ventre. E este crescia, crescia. Apareceu o Rei da Chave Dourada, envolvendo-as num abraço. Sentado, vigiava o descanso delas. E, assim, esteve um bom bocado. A seguir, deitou-se atrás da Princesa, aconchegando-lhe as costas, bem juntinho. A sua figura desapareceu, mas entrou na pele dela. As costas, a pélvis e as pernas encheram-se de energia, como se o corpo do Rei protegesse a Princesa. Sentiu muitas saudades e as lágrimas percorreram-lhe o rosto. Quase dormiu, sentindo o seu corpo bem apertado contra o corpo do Rei, com a energia amorosa da menina a crescer no seu ventre. O Rei protegeu-a e a Princesa gerou amor dentro de si. Foi tão mágico! Finalmente, a Princesa estava a aprender a receber. Precisava de ser protegida e de dormir sem medo.

Ficaram ali mais um pouco, enquanto a menina ria e corria perto deles. Estava alegre e o mar, por trás, acariciava-lhe os pezinhos. As lágrimas aqueceram o rosto da Princesa por mais tempo, enquanto o Rei a apertava e vigiava o seu sono, com um profundo amor.

Acordada de mais um sonho mágico, a Princesa compreendera um pouco mais da sua verdade. O Rei da Chave Dourada tinha deixado nela marcas profundas de amor e proteção, ainda que ele não soubesse disso. O que importava era que a Princesa tinha descoberto a sua capacidade de amar e que, com isso, abrira muito mais o seu coração. Daqui para a frente, seria muito mais fácil não se deixar enganar, passando a distinguir o verdadeiro amor das paixões efémeras.

Lá fora, o sol brilhava. Com o peito e as costas a arderem, lá foi a correr ter com os seus novos amigos, recomeçando o rodopio de aventuras, mas, desta vez, mais consciente da sua verdade.

 

CAPÍTULO 4: FALÉSIA DAS PAIXÕES EFÉMERAS

 

Mal começara o dia, já um dos seus amigos estava à porta a desafiá-la para uma série de aventuras aliciantes. A Princesa não precisaria de se preocupar com nada porque estava tudo tratado. Bastaria deixar-se ir e gozar o que a vida lhe oferecia tão generosamente, julgava ela.

Tinha vivido tempos tão difíceis, que agora se regozijava de poder divertir-se, sem esforço e sem quaisquer expetativas. Pela primeira vez na sua vida, aparecera alguém ainda mais rápido do que ela, de tal forma, que nem tempo tinha para ponderar coisíssima nenhuma. E o melhor de tudo é que aquele amigo a fazia rir muito e gostava, tal como ela, de dançar e desbravar caminhos desconhecidos.

O que a Princesa não estava à espera é que o seu amigo tivesse tanta pressa de viver e que, afinal, as brincadeiras não fossem brincadeiras, mas uma competição que ele fazia com o seu próprio destino…

Numa das brincadeiras, o amigo apressado lançou à Princesa um desafio, fazendo mil e umas acrobacias perigosas, deixando a Princesa preocupada. E com a voz doce de uma falsa promessa, tentou seduzi-la a fazer coisas que ela nunca tinha feito, em nome de o ajudar a atingir o topo da falésia. A Princesa, habituada a sentir as vibrações de um vulcão, recusou prontamente porque, por muito habilidosa que fosse, não era suficientemente segura para o ajudar. Se ela falhasse ele estatelar-se-ia contra os rochedos e seria engolido pelo mar.

Indignado com a impertinência da Princesa, aventurou-se sem o seu consentimento, vociferando que ela era uma Princesa mimada e que não julgasse que iria ficar de braços cruzados. Ele tinha-a ensinado a fazer novas acrobacias e ela teria que retribuir. E que estivesse bem ciente que dela dependeria a sua vida!

Cheia de medo e de muita coragem, a Princesa recorreu à ajuda de outros amigos que estavam por perto, para a ajudarem a desembaraçar o amigo apressado daquela situação perigosa. Este vociferava que nem um louco, completamente impotente. “Isto não é uma brincadeira! Segue o que eu te digo!”, dizia ele cheio de raiva.

Sem lhe dar ouvidos, a Princesa seguiu o seu instinto e, com a ajuda dos outros, lá trouxe o amigo apressado e zangado para terra firme. “Não percebes que sou novata, nisto? Tenho a noção dos meus limites! Podia matar-te, sem querer!”, dizia a Princesa. “Tens que acreditar, Princesa, Tens que acreditar! Tu és capaz!”, insistia o amigo, num estado perfeitamente febril.

E, nesse momento, a Princesa percebeu que não era dela que ele falava. Falava dele próprio e do seu medo. Cada brincadeira era uma questão de vida ou de morte e ele não podia falhar perante o perigo. A sua vida era feita em função de superar níveis cada vez mais difíceis e só o inatingível o movia. Por baixo de toda aquela exuberância e vivacidade, havia alguém carente de amor.

“Desculpa, Princesa, desculpa. Eu sou um bruto! reconheceu o amigo apressado, abraçando-a. “Tu és uma Princesa e mereces ser feliz. Eu sou terrível.”

Estas palavras tinham um tom dramático e ela não percebia como é que o amigo apressado tinha descoberto que ela era Princesa. E por que é que ele se esforçava tanto para lhe proporcionar momentos tão emocionantes!

A Princesa só queria brincar e não queria que a sua identidade fosse descoberta tão cedo. Estava a gostar de desbravar novos mundos, sem se prender a nada, e aquele amigo começava a sufocá-la com as suas exigências.

Os dias começaram a ser demasiado longos porque o tempo era pouco para todas as loucuras e, em vez de liberdade, a Princesa começou a sentir medo.

Os beijos, as danças e os risos eram desenfreados como as brincadeiras perigosas nas falésias e, em vez de prazer, começaram a trazer uma voz de alerta que se ouvia de dentro do coração da Princesa.

Atenta a todos os sinais, a Princesa decidiu pôr termo a toda aquela loucura, ficando outra vez sozinha. O seu coração estava muito mais aberto e já sabia distinguir o amor verdadeiro das paixões efémeras. Por isso, o seu gesto de afastamento foi inequívoco.

Tudo tinha acontecido a um ritmo vertiginoso e a Princesa adorou voltar ao seu recolhimento, onde se encontrava com as suas velhas e doces recordações.

Fechou os olhos e dormiu uma longa e tranquila noite.

 

CAPÍTULO 5: OCEANO DE MEMÓRIAS DE UNIDADE E DE ÊXTASE

 

O dia acordou luminoso e os Lagos, mais límpidos do que nunca, refletiam generosamente os raios do sol e a imagem dançante das flores. Nada se comparava a este lugar. Nele, a Princesa purificava a sua alma e aprendia a linguagem do Universo.

Com um doce pestanejar e uma respiração mais profunda, mergulhou num sonho.

Estava na praia outra vez, estendida na areia quente. O Rei da Chave Dourada deitou-se ao seu lado. De mãos dadas, ficaram bastante tempo. Gerou-se um silêncio cúmplice. A Princesa começou a sentir uma respiração no seu rosto e a energia do Rei a penetrar na sua pele. A respiração tornou-se mais intensa e uma forte energia se espalhou por todo o seu corpo.

Sentia a cabeça pequena e o corpo enorme. Em vez de um a respirar, eram dois. Respiravam por um tubo gigante que a Princesa sentia, claramente, dentro de si. Em torno do seu rosto, sentia o calor de uma respiração forte e poderosa. A sensação era de uma comunhão perfeita. Uma sensação mais poderosa do que a fusão de dois corpos num orgasmo pleno.

A Princesa precisou de algum tempo para voltar ao normal. Os braços ficaram temporariamente dormentes, o corpo colado ao chão e a cabeça zonza, apesar de uma grande paz.

A Princesa jurava que tinha sentido o Rei dentro de si. Como é que isso era possível? Estaria ele a pensar nela? Estariam as suas energias ligadas?

O que quer que fosse, a Sacerdotisa alertou a Princesa para os perigos dessas interpretações. A energia tem as suas magias e há coisas que só se compreendem mais tarde. A única verdade é que a Princesa era capaz de gerar harmonia dentro de si e que o Rei da Chave Dourada era um instrumento importante para o seu auto-conhecimento. O amor que sentia por ele era transformador e mexia com a vida de todas as partes do seu corpo.

“Querida, lembra-te que tens em ti a capacidade de amar e que os outros são interlocutores fundamentais para que possas descobrir isso. O teu Rei será sempre importante para ti porque abriu as portas do teu próprio coração e tocou todas as campainhas do teu corpo. Eu sei que, um dia, serás capaz de entender o que te estou a dizer. Por agora, guarda esta experiência valiosíssima e deixa que o Rei da Chave Dourada viva a sua vida. Ninguém perde ninguém e o desapego é o caminho para o amor incondicional”.

As palavras sábias da Sacerdotisa baralhavam a Princesa porque esta tinha um forte desejo, era jovem e alegre e precisava de sentir o calor da pele e a partilha dos risos. O amor incondicional parecia-lhe uma tarefa demasiado difícil para uma Princesa tão jovem. E estava cansada de não conseguir sentir essas maravilhas com outros meninos.

Quando voltaria a sentir o mesmo?

A Sacerdotisa sorria pacientemente, antevendo a longa caminhada da Princesa que dançava com os Vulcões.

A Princesa sentia saudades das fogueiras mágicas e das labaredas do fogo a lamberem a sua pele. Cansada de tanta fantasia, retornou ao seu mundo real, dançando desenfreadamente sem parar, esperando ser envolvida novamente pelos braços da paixão.

À sua volta surgiam bolhas coloridas de diversos tamanhos, sem que nenhuma lhe fosse familiar. Mesmo assim, aventurou-se numa delas, deixando-se embalar por um novo ritmo. Dançar era coisa que ela fazia sem dificuldade e, se fosse necessário, atearia a fogueira que havia dentro de si, para os movimentos serem mais intensos e prazenteiros.

Mas aconteceu o inesperado. O corpo da Princesa movimentava-se harmoniosamente, mas o seu interior não aquecia e, em vez de alegria e risos, a Princesa ficava cada vez mais triste, nascendo um grande vazio dentro de si.

“Por mais que tentes, o teu corpo não aquecerá porque só o amor tem o poder de voltar a deflagrar o vulcão que há dentro de ti. Lembra-te que já não és a mesma e que o teu coração tem uma palavra a dizer.”

Parecia a voz da Sacerdotisa, mas era a voz da Princesa que brotava do mais profundo do seu ser. Consciente da sua realidade, desatou num pranto que durara semanas.

A Princesa passou a deitar-se muito cedo e a frequentar, mais assiduamente, o Prado de Açucenas, para onde resvalara um dia.

Com o chakra do coração a mil, iniciou mais uma viagem pelo mundo interno das suas sensações. Estava sentada, sozinha, a contemplar o mar da sua aldeia favorita. Os recortes da montanha e a cor negra das rochas contrastavam com o azul do mar, imagem vívida que lhe provocou um sentimento de unidade e paz. As ondas revoltas, de espuma branca, eram de uma beleza mágica… e o seu coração deixava-se embalar ao seu ritmo. E, numa dança criativa e sensual, as ondas traziam uma cabeleira grisalha.

Era ele, lutando contra a maré. Ficou serena, mas atenta. Os braços da Princesa ficaram enormes e cheios de energia, desproporcionais em relação ao resto do corpo. Se ele precisasse e quisesse, ela estaria ali para o ajudar, mas respeitou. Ele lutava e lutava para vencer a maré.

A Princesa percebeu que ele estava a cansar-se desnecessariamente, tentando ser mais forte que o mar. Vendo-o tão cansado e triste, sussurrou-lhe que se deixasse ir com as ondas e que parasse de lutar. Assim fez. Deixou-se boiar e as lágrimas percorreram-lhe o rosto. A Princesa aproximou-se, de mansinho, e abraçou-o, deixando-se embalar também, em silêncio.

O mar segredou-lhes que vigiaria o seu descanso e a sua intimidade. Estava quentinho e as ondas levavam-nos e traziam-nos, para a direita e para a esquerda, acima e abaixo, numa dança regressiva e muito íntima, como uma gestação amorosa num útero materno. Os seus rostos encostavam-se um ao outro. Ele chorava silenciosamente e ela limpava-lhe as lágrimas. Estava tudo dito, não eram precisas palavras. Ambos sabiam do que se tratava. Estavam a nascer de novo e as mágoas não têm lugar entre dois seres que se querem bem.

O mar desapareceu entretanto e, no lugar das ondas, estava uma cama fofinha cheia de cobertores vermelhos. Faziam ondas também e o calor era mais intenso. Ficaram despidos e agora eram os seus corpos que desenhavam ondas sensuais e de ternura. O corpo da Princesa encheu-se de energia, agora todo por igual. Até aqui, os braços mexiam-se para sobreviver ao mar revolto e, agora, todo o corpo se entregava à magia ondulante do amor.

Não se largaram mais, envoltos num mar de beijos e carícias. A vitalidade aumentava e os risos começaram a sair da pele. O sorriso dele continuava lindo, como sempre, e as gargalhadas de ambos soavam por entre um vai-vem de almofadas pelo ar, de abraços intensos e pura alegria.

Desta vez, a Princesa já não precisara da leitura avisada da Sacerdotisa, recordando-se dos mestres orientais que diziam que era possível, pela imaginação, aumentar a energia do corpo até ao êxtase absoluto. Se assim era, a Princesa acreditava que, para isso, seria preciso casar um Rei e uma Rainha, dentro de si. Mas como ainda era Princesa, precisaria da ajuda do menino Rei para acordar nela o seu verdadeiro Rei interior.

A Princesa sentira-se orgulhosa da sua brilhante conclusão, apesar de, no seu íntimo, ainda acreditar que um dia voltaria a encontrar o seu companheiro da bolha azul e brilhante.

 

CAPÍTULO 6: ANSIEDADE E DESEJO DE LIBERTAÇÃO

 

A Princesa ganhara uma nova força.

Retomou velhas tarefas que precisavam de ser terminadas e comprou uma casa linda, onde ajudava pessoas que, como ela, desejavam muito encontrar o seu caminho de regresso a casa.

Envolvida no trabalho que viria a torná-la uma espécie de Feiticeira, a Princesa alegrou-se por perceber que os velhos ciclos começavam a chegar ao fim.

A sua nova casa era também um sinal de maturidade e de enraizamento. Em tempos, a Princesa aprendera que era preciso ganhar raízes para se ser verdadeiramente produtivo e feliz e que o amor era uma qualidade que só crescia dentro de pessoas capazes de permanecer.

Ao mesmo tempo, as suas viagens mágicas tinham-na ajudado a perceber que, para se viver um verdadeiro amor com alguém, seria preciso casar o Rei e a Rainha que havia dentro de nós e que são as pessoas que vamos encontrando na vida que ajudam a acordar em nós esse Reino.

A Princesa só não entendia por que é que ela, depois de tantas viagens amorosas com o Rei da Chave Dourada, ainda não estava inteira para ser finalmente feliz! Já tinha percebido que, dentro de si, havia uma imensa capacidade de amar e um Rei amoroso, protetor e cheio de vitalidade.

Que faltaria ainda para não ser capaz de sentir risos na pele outra vez?

E, apesar da azáfama de muitos afazeres, a Princesa continuava a sentir muita tristeza e muitas saudades do seu amigo da bolha azul e brilhante, ouvindo-se, do seu íntimo, uma canção que passara a embalá-la todas as noites.

 

“São muitas as campainhas que tocam.

Sou como um rio de memórias que não para de se renovar.

Por isso, a tristeza não se vai embora tão depressa. Terei que conviver com ela até ao fim do caminho.

Saberei quando chegar a altura.

Nas pausas silenciosas, cairão lágrimas de sabedoria pelo meu rosto, que brilharão como diamantes.

E, depois, sentirei vontade de ver gente outra vez.”

 

Num desses dias, a Princesa acordou com uma grande ansiedade. Nada acontecera que o justificasse, até porque já tinha encontrado uma relativa paz dentro de si. As últimas viagens mágicas tinham-na conduzido a sensações de profundo amor e de proteção. Porquê aquela ansiedade?

Ia caminhando pela rua e uma série de imagens se inscreviam no seu pensamento: cenas de rejeição e de traição do menino Rei que brincava com o Fogo. A raiva e a ansiedade cresciam dentro de si. E assim andou uns dias, até resvalar novamente para o Prado de Açucenas.

Nesse dia, as flores estavam fechadas sobre si e os Lagos estavam turvos. Até a natureza parecia zangada.

Lentamente, a Princesa foi entrando num estado de maior relaxamento. De pé, à sua frente, estava o Rei que brincava com o Fogo, com um ar gozão e muito sedutor. A Princesa não sentiu nenhuma vibração no seu corpo. Pelo contrário, ficou assustada e com muita raiva.

Uma das leis do Prado de Açucenas dizia que, quando as memórias de alguém nos provocam dor, é fundamental visualizarmos essa pessoa, enviando-lhe pensamentos de luz cor de rosa. Gradualmente, essa pessoa ficará mais tranquila e nós, por estarmos tão ligados a ela, voltaremos a respirar melhor também.

Recordando-se dessa lei, a Princesa aceitou que ele se aproximasse, se deitasse ao seu lado e, a seguir, entrasse pela porta que entretanto se abria no seu coração.

A energia do Rei entrou no seu corpo e, automaticamente, a Princesa começou a sentir uma pressão no peito e na barriga, como se estivessem espartilhados. A sensação era tão desagradável que decidiu fazer alquimia, misturando a sua energia com a dele. Magicamente, foi-se sentindo mais leve. A ansiedade quase desaparecera. Para que o processo não voltasse ao início, a Princesa convidou-o a sair, mas ele não se ausentou por completo. Sentou-se debaixo de uma árvore, dobrado sobre si próprio e muito triste. Parecia estar em grande sofrimento, mas mais verdadeiro.

“Não posso fazer mais nada por ti!”; disse a Princesa. “Terás que viver sozinho a tua tristeza, até ao fim. Deixa-me dizer-te que quando choras ficas mais verdadeiro e, ao olhar para ti, o meu corpo respira melhor”.

Definitivamente mais serena, voltou ao aqui e agora da sua vida.

Consciente de ter iniciado uma nova etapa na busca do seu caminho de regresso a casa, a Princesa que dançava com os Vulcões não mais parara de fazer alquimia, sempre que as memórias do passado a perturbavam.

 

“São muitas as campainhas que tocam.

Sou como um rio de memórias que não pára de se renovar.

Por isso, a tristeza não se vai embora tão depressa. Terei que conviver com ela até ao fim do caminho.

Saberei quando chegar a altura.

Nas pausas silenciosas, cairão lágrimas de sabedoria pelo meu rosto, que brilharão como diamantes.

E, depois, sentirei vontade de ver gente outra vez.”

 

CAPÍTULO 7: O UNIVERSO PRECIPITA OS ACONTECIMENTOS

 

“E, depois, sentirei vontade de ver gente outra vez….”

 

Esta frase do cântico triste acendeu na Princesa um desejo de viajar pelo mundo, para que novos horizontes a pudessem inspirar… e pudesse, finalmente, descansar.

Tentara viver em reinos diferentes do seu e não tinha resultado.

Tentara embarcar numa nova bolha, entregando-se aos braços da paixão e, mais uma vez, não resultara.

Decidiu, então, viajar. Começaria pelo Velho Mundo, onde abundavam os templos sagrados e mitos de cavaleiros incansáveis, à procura do Graal. Desde sempre que estas estórias encantavam a Princesa que dançava com os Vulcões. Tinha chegado a altura de percorrer alguns desses caminhos, pedindo ajuda à Sabedoria do Universo.

Consta que esses cavaleiros, muitas vezes, se perderam pelo caminho, ou porque se iludiam com falsos poderes ou porque, simplesmente, deixavam de confiar. Também em tempos, a Princesa tinha visto, no olhar do Rei das Viagens, o reflexo de uma linda Chave Dourada que um dia abriria a porta sagrada do seu coração. Cansada de tantas desilusões, e com medo de estar a ficar doente, a Princesa resolveu acreditar que aquele reflexo fora apenas uma ilusão e que era urgente por termo às suas fantasias.

Em cada templo que visitava, queimava velas mágicas e, por ser já muito habilidosa na arte da visualização criativa, dançava também à volta de fogueiras sagradas que se incendiavam dentro de si. Este ritual íntimo servia para apelar à Sabedoria do Universo que a ajudasse a esquecer o Rei da Chave Dourada, ficando disponível para que a vida a surpreendesse.

A Princesa repetiu este ritual vezes sem conta e, em vez de alegria e liberdade, ficava cada vez mais triste. Quando se distraía, a imagem do Rei impunha-se com tal intensidade, que todos os lugares que visitara, no velho Mundo, lhe pareciam iguais e sem brilho.

Em vez de horizontes novos e luminosos, o Velho Mundo apresentava-se-lhe sem graça. Perante ele, nenhuma célula do seu corpo sorria, sobrando-lhe apenas uma necessidade compulsiva de regressar a casa.

Quanto mais pedia ao Universo que afastasse de si a imagem do Rei da Chave Dourada, mais a natureza se revoltava, apresentando-lhe sinais do contrário. E isto acontecia sempre que a Princesa dançava com toda a sua força!

A ansiedade começou a tornar-se insuportável e a Princesa decidiu acabar com o seu sofrimento.

Teriam as suas danças mágicas perdido a força ou estaria o Universo a dizer-lhe que a sua aprendizagem com o Rei ainda não tinha chegado ao fim?

O que quer que fosse que estivesse a acontecer, decidiu ir ter com o Rei da Chave Dourada que vivia num país muito distante dali. A Princesa queria ser feliz e aquela ansiedade desesperante só terminaria se ela tirasse todas as dúvidas. E só o Rei da Chave Dourada poderia ajudá-la nesse empreendimento.

Consciente dos riscos que corria, começou a preparar mentalmente a melhor forma de avisar o Rei.

Nesse dia, o sol mal fizera sentir a sua presença e o vento soprava mais forte do que alguma vez se lembrava.

Apreensiva com a reação da natureza, apesar de estar convicta da sua decisão, a Princesa consultou a Feiticeira da Floresta Mágica que, nestas situações delicadas, tinha um discernimento e uma segurança fora do comum. Desse encontro, recolheu conselhos importantes e bebeu da poção da força e da autoproteção.

Passados apenas uns dias, e contra todas as expetativas, o Rei da Chave Dourada anunciou o seu regresso ao país da Floresta Mágica, manifestando o desejo de falar pessoalmente com a Princesa que dançava com os Vulcões.

Perplexa, tudo indicava que o Universo conspirava a favor de que toda esta história se resolvesse ou, então, se conduzisse por caminhos que só Ele saberia. E, bem lá no fundo, a Princesa percebera que o Universo a envolvia no seu enorme abraço protetor.

Com um misto de gratidão e muito medo, a Princesa dos Vulcões aguardou, compenetrada, a visita do Rei da Chave Dourada.

Enquanto esperava, escreveu o importante Manuscrito que a tornaria, em breve, uma Feiticeira reconhecida, terminando assim mais um ciclo muito importante da sua vida.

 

CAPÍTULO 8: COMUNICAÇÃO COM AS ESTRELAS – ROTA DA INTUIÇÃO

Por ter sofrido muito, a Princesa que dançava com os Vulcões crescera muito também. Aprendera a escutar a voz da sua intuição e a ler os sinais do Universo. Aprendera a esperar, a refrear os seus impulsos vulcânicos e a agir no momento certo.

Apesar da inquietação crescente e do Rei da Chave Dourada ter desaparecido, sem deixar rasto, a Princesa continuava a senti-lo por perto porque a natureza insistia em falar-lhe disso. Percebera que nada existia separadamente e que ela e o Rei pertenciam a um todo com sentido e, enquanto o seu trabalho, juntos, não estivesse terminado, teriam que se encontrar as vezes que fossem necessárias.

A Princesa não podia esquecer a sua verdadeira natureza! Ela tinha a curiosidade das crianças e a força dos vulcões e, por isso, jamais desistiria a meio do percurso, fosse qual fosse a dificuldade.

Posto isto, aguardou a chegada do Rei da Chave Dourada.

O tempo passava, sem que nenhuma notícia chegasse, e a Princesa começou a ficar muito inquieta. Depois de uma longa estada na Floresta Mágica e da sua passagem pelo Prado de Açucenas, tinha aprendido que só ela saberia identificar o momento chave para agir e que isso seria da sua total responsabilidade.

Ciente da sua difícil missão, num dos seus muitos passeios dialogantes à beira mar, a Princesa foi surpreendida por uma inesperada visão. O Rei da Chave Dourada passeava descontraidamente com a sua antiga companheira…

O choque foi tão grande que a Princesa ficou sem pinga de sangue no rosto, cambaleando até ao coche mágico que a transportou, durante horas, por um caminho sem curvas e sem gente. Assim esteve, em silêncio e quase paralisada, até ao anoitecer.

Como é que isto era possível? Como é que o seu amigo lhe tinha prometido uma visita e, afinal, não estava a pensar nela? Esse encontro tinha um significado importante porque, acima de tudo, a Princesa acreditava que podia ser esclarecedor de muitas dúvidas e sarar algumas feridas.

Não era possível que o Rei da Chave Dourada não soubesse que a Princesa dos Vulcões estaria ansiosamente à sua espera, depois de uma tão longa ausência! A Princesa achava que o Rei poderia tê-la poupado de mais um choque.

Envolta nestes pensamentos, a tristeza começou a dar lugar à raiva e ao medo e decidiu que, antes de voltar a falar com o Rei que brincava com o Fogo, faria uma visita ao Prado de Açucenas, para limpar a sua alma de todas as mágoas e ganhar coragem para encerrar, de uma vez por todas, este capítulo na sua vida.

Antes disso, recolhera-se no colo amoroso de uma sábia amiga que a conduziu numa longa conversa com as estrelas.

Estava uma noite quente de verão e o céu rejubilava de tranquilidade. Apesar da grande dor que a Princesa trazia no coração, o diálogo com as estrelas foi-lhe devolvendo confiança e um grande sentimento de amor, sobretudo quando uma delas, a maior e mais brilhante, olhou para ela, demoradamente, pestanejando num compasso doce e poderoso. Era Vénus, em todo o seu esplendor.

Acontecesse o que acontecesse, o Universo falava-lhe de amor…

Nessa noite, sentiu que não estava só e que, um dia, os seus sonhos tornar-se-iam realidade.

Com um olhar de gratidão, despediu-se da sua amiga e da sua boa estrela, dormindo uma longa e profunda noite.

Amanheceu, no Prado de Açucenas. As águas dos Lagos estavam agitadas e os pássaros esvoaçavam, sem norte. As flores, assustadas, formaram um círculo muito apertado, aguardando melhores tempos. E, nisto, a Princesa mergulhou em mais um sonho mágico.

Nesse dia, a sua respiração estava muito agitada e, seguindo a voz da Sacerdotisa, procurou uma imagem que a sossegasse. Apareceu o Rei da Chave Dourada que ousou aproximar-se dela. A Sacerdotisa, que já se afeiçoara à Princesa e que não suportava mais vê-la sofrer, sugeriu-lhe prontamente que o mandasse embora. Vulnerável, a Princesa tentou cumprir a sugestão, mas agitava-se cada vez mais. O Rei movia-se agitadamente, também, ao seu lado. Ia e vinha, tal como os pássaros sem norte. Cansada, a Princesa desatou a chorar e disse à Sacerdotisa que tinha aprendido com ela a não lutar contra a sua intuição. Por isso, pararia de lutar e deixaria que a imagem se formasse, para que a paz retornasse ao seu corpo e à sua alma. Assim fez. Imediatamente, o Rei deitou-se ao seu lado e deu-lhe a mão. Em segundos, a Princesa tranquilizou-se e todo o seu corpo respirou melhor.

As Açucenas abriram lentamente o círculo e as águas dos Lagos aquietaram-se. O livre trinar dos pássaros anunciava à Princesa o momento certo para agir.

Segura de si e do seu grande amor, apesar do medo, a Princesa deixou o Prado de Açucenas e, por baixo da copa de uma grande e velha árvore, iniciou o canto que, em tempos, usava para chamar o Rei da Chave Dourada.

 

CAPÍTULO 9: REENCONTRO MÁGICO, NUMA BOLHA LUMINOSA E TRANQUILA

 

A frondosa copa da grande e velha árvore movimentava-se ao ritmo do canto da Princesa dos Vulcões, produzindo ondas melódicas que apanharam de surpresa o Rei da Chave Dourada.

As primeiras notas que a Princesa e o Rei trocaram ressoaram em harmonia, como nos velhos tempos da bolha azul e brilhante. E, naquele instante, a Princesa que Dançava com os Vulcões esqueceu todas as mágoas, deixando-se acolher pela voz límpida e recetiva do Rei da Chave Dourada.

Era como se o tempo não tivesse passado desde a última vez que riram juntos. Combinaram encontrar-se nesse mesmo dia, quando o sol se recolhesse e ambos tivessem terminado os seus afazeres.

A velha árvore sorria através das suas folhas e, com a sua sombra, envolveu a Princesa num refrescante abraço.

A Princesa dos Vulcões estava muito grata por ter vencido o primeiro desafio, no seu reencontro com o Rei da Chave Dourada. Estava grata, sobretudo por ter sabido esperar pelo momento certo, apesar de muitas vezes ter desesperado e ter-lhe apetecido incendiar todos os caminhos que a conduziam ao Rei.

Aliviada, a Princesa deixou-se penetrar pela luz do dia, preparando-se para uma noite de fortíssimas emoções.

O fim de tarde aproximava-se e o calor de verão espraiava-se em todas as direções. O vento decidiu não aparecer nessa noite, contribuindo para que nada no Universo perturbasse o encontro emocionante e delicado da Princesa e do Rei. A natureza é sábia e conhece bem o seu poder. Nada existe fora de nada e, em momentos chave, é importante a colaboração de todos os seres, respeitando a harmonia e a lei das sincronicidades.

Em todo este cenário vivo, mas discreto na sua manifestação, só os movimentos e as vozes da Princesa e do Rei assumiriam os seus contornos nítidos, desenhando círculos imbuídos de significado. A natureza estaria ali apenas para orquestrar e acolher o novo rumo definido pela Princesa dos Vulcões e pelo Rei da Chave Dourada.

Com o coração aos saltos e a respiração ansiosa, a Princesa dirigiu-se ao ponto de encontro, onde estava o Rei, também ansioso, à sua espera.

Como teria ele vivido todo aquele ano? Que teria acontecido, dentro de si, para não ser capaz de mandar notícias à sua amiga Princesa e de responder às suas cartas? Por que razão desejaria ele voltar a vê-la? Estas perguntas bailavam dentro da cabeça da Princesa, enquanto apreciava o sorriso lindo e o rosto luminoso do Rei da Chave Dourada, agora mais velho e com um olhar mais triste. E, pouco a pouco, todos os pensamentos desapareceram, restando apenas uma doce sensação de felicidade.

Cumprimentaram-se e dirigiram-se, a conselho do Rei, para um lugar mágico de onde se contemplava o céu mais de perto e, ao longe, se avistava um lindo castelo que, em tempos longínquos, acolhera muitas estórias de reis e rainhas.

Assim foi e, com muita atenção e ternura no olhar, a Princesa escutou a longa história do Rei da Chave Dourada.

O Rei vivera tempos muito difíceis, mexendo e remexendo em velhos feitiços e abrindo velhas feridas. Sofrera muito e chorara todos os dias. Com isso, parece ter visto, no rosto da sua companheira de viagem, o seu próprio talento para brincar com o fogo e magoar pessoas queridas, aceitando o sofrimento como um Portal para a transformação. Com tristeza profunda no olhar, o Rei confessou que, depois de se ter queimado, gravemente, numa dessas brincadeiras, compreendera melhor a raiva e o sofrimento da Princesa dos Vulcões, causados, um dia, pela crueldade das suas brincadeiras com o fogo. Desde então, pensara nela todos os dias.

A Princesa escutava com a máxima atenção, percebendo que também o Rei tinha iniciado uma grande viagem pelo mundo do autoconhecimento e que a sua vida estava a sofrer uma grande transformação.

O Rei prosseguiu, falando do seu recolhimento e da grande viagem espiritual que iniciara. Tal como a Princesa, mergulhara em sonhos mágicos e meditações que o conduziram a lugares recônditos dentro de si. E, em alguns desses percursos, a Princesa manifestava-se como uma memória quentinha e protetora. Ao escutar isto, a Princesa maravilhou-se com a Sabedoria do Universo, lembrando-se de todas as vezes que sentira o amor e a proteção do Rei e que vira a sua tristeza.

Entretanto, o Rei da Chave Dourada falou de coincidências, olhando para o céu estrelado e para o castelo que ao longe se avistava. As mensagens que a Princesa lhe enviara, de longe a longe, eram síncronas com acontecimentos significativos na vida do Rei, adquirindo um sentido que o aproximava da Princesa.

O Universo tinha os seus mistérios e, definitivamente, parecia que o Rei e a Princesa faziam parte do mesmo círculo de acontecimentos. E esse fenómeno ocorrera nesse mesmo dia. Contou o Rei que, nessa manhã, estava ansioso e hesitava entre comunicar ou não comunicar com a Princesa, indo e vindo como os pássaros sem norte do Prado de Açucenas. E, ao mesmo tempo que a sua companheira de viagem se afastava do seu reino, foi surpreendido pelo canto da Princesa, trazido pelas ondas melódicas da atmosfera.

Parecia que tudo se encaixava, como um só corpo, dançando os seus opostos.

No silêncio da noite, o olhar da Princesa e do Rei cruzaram-se e ali ficaram por uns instantes. A intensidade era grande. Talvez ainda maior que a capacidade de ambos para contê-la.

Sem palavras, despediram-se num abraço quentinho, respeitando a ternura e a tristeza.

A Princesa adormeceu, com um longo sorriso nos lábios e, a envolvê-la, a doce sensação de uma bolha luminosa e tranquila.

 

CAPÍTULO 10: FOGO ANUNCIADO E NOVA SEPARAÇÃO

 

A Princesa acordou, envolta por uma luz magnífica que enchera os seus olhos de um brilho intenso. E a tristeza, que há muito a acompanhava, transformou-se em lágrimas de sabedoria, que brilhavam como diamantes.

Mal cumprimentara a manhã, já o canto do Rei se fazia ouvir, sugerindo, suavemente, um banquete, ao qual a Princesa aderiu com muita alegria.

Era protetor para ela, ser o Rei a chamá-la desta vez, porque no seu coração ainda havia memórias de todas as vezes que o seu canto não fora ouvido, deixando-a suspensa e desamparada. Apesar de estar feliz, a Princesa mantinha na alma uma insegurança que a levou, sem querer, nos dias seguintes, a agir com base no medo de que o Rei voltasse a desaparecer.

O banquete não foi fácil para a Princesa porque, de cada vez que encontrava os olhos do Rei, o seu corpo vibrava com mais força do que ela podia suportar. Nesses momentos, ela precisava de um contacto firme para poder relaxar e sossegar. Para além disso, era muito difícil não tocar, com as mãos ou com as palavras, uma pessoa que se ama.

À primeira tentativa de contacto, o Rei recuou. Para ele, era importante dar mais tempo e desfrutar da companhia da Princesa, sem deixar que os risos saíssem excessivamente da pele. Tinha vivido tempos muito difíceis e mal se separara da sua companheira de viagem e de muitas outras ilusões.

Ter-se-ia separado? Esta foi a pergunta que a Princesa não fizera, por medo ou excesso de confiança nos sinais. Não sabia. E, por não saber, mais uma vez se desprotegeu, calando a voz da sua Sacerdotisa interior.

Nessa noite, o vento marcou a sua presença, trazendo de longe um aroma a terra queimada, anunciando, quem sabe, um fogo atrevido.

A Princesa reparava que o Rei da Chave Dourada estava mais maduro e cuidadoso, dando mais tempo às suas emoções e respeitando mais a dor alheia. Reparava também que a fixava demoradamente, talvez para perceber o que sentia por ela, e isso causava à Princesa um misto de admiração e de insegurança. Por um lado, gostava muito do ar sério e profundo do seu amigo Rei, mas, por outro, sentia-se à prova novamente.

De tempos a tempos, a Princesa ouvia o rugido de um vulcão, assustando-se discretamente.

Mas, apesar de tudo isto, o Rei e a Princesa partilharam, em pouco tempo, muitas coisas. Entre elas, uma viagem de coche mágico, rumo a lugares conhecidos onde, em tempos, faziam longas caminhadas e trocavam carícias e segredos.

Apesar de todos os cuidados, a Princesa e o Rei deixaram-se levar pelos risos da pele, desenhando nos seus corpos ondas sensuais e de ternura…

O rugido do vulcão fez-se ouvir mais intensamente e umas labaredas de fogo vislumbraram-se no horizonte.

Assustado, o Rei mergulhou no espaço da sua solidão, vedando o acesso à sua amiga Princesa. E esta, ferida e assustada também, recolheu-se no seu próprio regaço, sem que as palavras pudessem ajudá-la.

Ainda caminharam. Ainda fizeram banquetes. Ainda conversaram. Mas nada era como antigamente. Já não saíam risos da pele e o medo falava mais alto. Despediram-se e a Princesa, apesar de tudo, acalentou a esperança de que o Rei precisaria apenas de mais tempo, sem necessidade de lhe virar as costas, deixando-a novamente no vazio. O Rei estava mais maduro e cuidadoso e saberia, daqui para a frente, gerir a sua relação com ela, sem brincar com o fogo novamente.

De dentro do coração da Princesa, voltou a ouvir-se o cântico triste e o eco de todos os ensinamentos da Floresta Mágica e do Prado de Açucenas. A sua transformação não se dera ainda completamente. Precisaria de continuar a ir, de verdade em verdade, até encontrar o seu caminho de regresso a casa.

Passaram-se muitos dias. A Princesa aguardava, ansiosamente, notícias do Rei da Chave Dourada, para que pudessem transformar a dor em cicatriz e a cicatriz em ternura.

Ousou chamá-lo novamente, mas ele não lhe deu ouvidos. Estava confuso e não queria conversar, o que deixou a Princesa numa tristeza profunda. Ela não compreendia como isso era possível, entre duas pessoas íntimas e unidas pela Sabedoria do Universo.

A Princesa sabia que a vida era cheia de mistérios e que nem tudo era o que parecia ser, mas a sua fragilidade exigia-lhe uma medida de autoproteção. Estava cansada de não ter respostas e de ficar no vazio. Por isso, insistiu com o Rei para que tivessem uma conversa definitiva, com contornos de verdade e de ternura.

Era noite e, ao longe, via-se o grande rio, atravessado por uma ponte iluminada. A Princesa observava os percursos, sempre novos, da água prateada e percebeu que assim deveria ser a sua relação com o Rei.

A imprevisibilidade do Rei da Chave Dourada estava a tornar-se repetitiva e, se ambos não rompessem esse ciclo, as suas feridas transformar-se-iam, com o tempo, em pântanos de água morta. Com esta convicção, a Princesa e o Rei acordaram separar-se ali.

O Rei continuava preso ao seu passado e a Princesa dos Vulcões precisava de ser feliz outra vez.

Com o coração partido, a Princesa afastou-se, levando consigo o sorriso luminoso do menino Rei e todas as memórias de risos a saírem da pele. Levou também o sabor amargo de muitas ilusões e a perplexidade perante o misterioso feitiço da vida.

Tudo lhe parecia mais um sonho mágico do Prado de Açucenas. Ela tinha voltado a abraçar o Rei da Chave Dourada e, afinal, tudo terminara num pestanejar.

Que significado teriam todos os sinais do Universo e por que razão a vida lhe devolvera o Rei para depois lho tirar? Estas eram perguntas sem resposta ainda, mas a Princesa intuía que nada teria sido em vão.

A sua relação com o Rei da Chave Dourada tinha-a conduzido a um Portal de Transformação. Ela estava a aprender a linguagem mágica do Universo e a recordar-se daquilo que sempre soubera, mas que o seu corpo esquecera – Que o verdadeiro amor é eterno e que ela não estava só.

 

CAPÍTULO 11: O VULCÃO CONSOME A ÚLTIMA SEMENTE DE ILUSÃO

 

O calor do Verão era convidativo a umas férias, longe dos lugares comuns.

Acompanhada na sua solidão, a Princesa preparou o seu coche mágico que a conduziu por caminhos lindíssimos, rodeados de bosques e de montes escarpados. O pôr-do-sol no horizonte debruava o céu a vermelho… luz cálida, tranquila que o mar acolhia generosamente.

A imensidão e beleza da paisagem enchiam qualquer vazio que a Princesa pudesse sentir. E as gralhas, cúmplices, cortavam o silêncio com o seu barulho indisciplinado, distraindo a Princesa de pensamentos tristes.

Nas aldeias por onde passara, as suas gentes deixaram escapar a curiosidade de que, numa montanha perto dali, havia um lugar sagrado que falava com as pessoas a partir do silêncio. Esse lugar era muito escondido e muito pouca gente o encontrava.

Curiosa, a Princesa nem hesitou. Pôs-se a caminho, logo ao amanhecer, bebendo da aragem fresca e do aroma calmante dos bosques. Se tudo corresse bem, chegaria ainda de manhã àquele lugar sagrado, prevenindo-se do calor tórrido que lhe dificultava a concentração.

O coche mágico, infelizmente, não era tão ágil como o cavalo selvagem nem tão corajoso como o lobo das estepes. Ao mínimo obstáculo, patinava e fazia rolar pedras e pedregulhos. Ainda por cima, os caminhos eram estreitos e era o cabo dos trabalhos para inverter a marcha. Quando isso acontecia, a Princesa blasfemava para afugentar o perigo, ou não fosse ela A que dançava com os Vulcões!

Pela montanha, havia sinais a indicar o caminho, mas todos eles terminavam em precipícios ou estradas cortadas por obstáculos intransponíveis. Já saturada, a Princesa queria desistir, não fosse uma das suas amigas bruxinhas, que a acompanhara nessa aventura, aconselhá-la a seguir o caminho mais linear, aquele que não tinha sinais e que ainda não tinham tentado.

Meu dito, meu feito. Longe dos principais perigos, o coche mágico recuperou a genica habitual, conduzindo a Princesa e a amiga por uma estrada sinuosa e ascendente que terminava numa picada de terra batida. Ao alto, erguia-se um pagode lindíssimo, em tons de castanho e vermelho, contrastantes com o verde da montanha. Tiveram que subir o resto do caminho a pé, pressentindo o silêncio falante daquele lugar maravilhoso.

Do pagode, a beleza da paisagem era de cortar a respiração e o espaço que se abria falava de liberdade e desapego. A Princesa queria saber se ali se faziam encontros com Mestres e pessoas calorosas. Deu uma volta para se informar, quando apareceu um homem velho, de vestes simples, com a sabedoria das crianças estampada no olhar. Os seus olhos eram de uma bondade e inocência infinitas e o seu sorriso irradiava simplicidade e alegria serena. Recebeu a Princesa e a amiga, falando durante dez minutos apenas, numa sala rasgada por uma janela de onde o horizonte lhes falava.

O tom da voz do velho Mestre soava como uma harpa do país dos Deuses, embalando as duas amigas. A Princesa nunca tinha sentido, de forma tão intensa, a eternidade num só instante. Apenas os momentos de cumplicidade com o Rei da Chave Dourada a tinham feito sentir algo semelhante e, ali, esse passado tornou-se presente e toda a dor se desvaneceu do seu coração.

Nesse lugar sagrado, o tempo parava e tudo existia em simultâneo, o passado, o presente e o futuro. A Princesa penou para chegar àquele lugar sagrado e foi retribuída. Compreendeu, de corpo e alma, que a verdade universal mais simples só pode ser revelada, depois de se mergulhar nas trevas e se atravessar corajosamente a porta do sofrimento.

As duas amigas afastaram-se silenciosamente do lugar sagrado e constataram que, afinal, o caminho era simples e que o coche mágico deslizava como um pinguim, numa planície gelada.

Terminadas as férias, cada uma regressou à sua vida, cheias de experiências para contar.

A Princesa sentia-se tão plena com a lição aprendida naquele lugar, que não se conteve de a partilhar com o Rei da Chave Dourada que, tal como ela, era fascinado por essas experiências e persistente na busca difícil do seu caminho de regresso a casa.

A mensagem seguiu, veloz como o vento. E, como uma rajada, parece ter atingido o Rei da pior maneira porque este imediatamente lhe devolveu palavras contundentes que exigiam que a Princesa não voltasse a repetir a proeza de o contactar. Ele estava novamente com a sua velha companheira e não queria ser perturbado.

Desta vez, a violência do Rei que brincava com o Fogo tinha ido longe demais. A Princesa sentiu que algo dentro de si se rompera, deixando-a fragmentada por muitos dias. Foi invadida por uma terrível dor e os seus joelhos enfraqueceram como os de um guerreiro encurralado.

À medida que o tempo ia passando, a dor dava lugar à raiva profunda, ouvindo-se, de dentro de si, o rugido violento de um vulcão.

 

CAPÍTULO 12: NO LUGAR DO VULCÃO EXTINTO, NASCE UMA TERRA DOCE E FÉRTIL

 

Fazia frio no Prado de Açucenas. Os Lagos estavam gelados e, sobre eles, jaziam, inertes, as aves e as flores.

Ao alto, erguiam-se as nuvens iluminadas pelo sol, convidando a Princesa a subir e a instalar-se. Por todo o lado, apareceram seres alados, com lindas cabeleiras loiras, que a acolheram com leveza e alegria. A voz da Sacerdotisa sugeriu que se deitasse na nuvem mais confortável e se deixasse penetrar pelo amor de todos aqueles seres.

Nisto, lágrimas doces percorreram o rosto da Princesa, enchendo o seu peito de calor e proteção. Envolto por uma luz branca, o Rei da Chave Dourada surgiu por entre o algodão das nuvens e abraçou a Princesa, formando com ela uma esfera de luz. A sensação era de uma profunda harmonia e um grande sentimento de infinito tomou conta da Princesa dos Vulcões.

A paz não permaneceu para sempre. De repente, uma força brutal sugou o Rei dos braços da Princesa. Ambos estendiam desesperadamente os braços um para o outro, mas a grande força afastou o Rei para a lonjura do Universo. A Princesa sentiu uma dor dilacerante no peito, como se o seu corpo se tivesse rasgado por ali, deixando nela a marca profunda da separação primordial.

A solidão e o desespero eram tão grandes que a Sacerdotisa prontamente lhe pediu que voltasse a visualizar o seu amigo Rei e o chamasse para perto de si. Assim foi. Por uma questão de sobrevivência, a Princesa reagiu de imediato, voltando a abraçar intensamente o Rei da Chave Dourada. A toda a volta, surgiam seres lindíssimos cheios de luz, nomeadamente o Grande Rei, estendendo os seus braços para cima e cantando um Hino de Glória.

Seguindo a voz da Sacerdotisa, a Princesa subiu umas escadas de luz, no cimo das quais estava o Grande Rei à sua espera para lhe dizer, amorosamente, que ela merecia ser feliz. Sob cada um dos seus braços e contra o seu peito, o Grande Rei aconchegou a Princesa e o Rei da Chave Dourada.

A Princesa sentiu que, dentro de si, havia uma enorme figura masculina que se transformava. No lugar do terrível vulcão, começava agora a nascer uma terra doce e fértil da qual nasceriam, em breve, duas árvores douradas de fortes raízes e copas frondosas.

Mais tranquila, a Princesa acordou deste sonho, compreendendo melhor tudo o que lera e estudara sobre a Sabedoria do Universo. Percebeu que dentro dela estavam todas as memórias de unidade e de separação e que a sua vida era uma caminhada em direção à integração de todas aquelas partes em si que, em tempos, se dissociaram.

“Os nossos mestres são todos aqueles que nos marcam profundamente e que acordam em nós memórias, sonhos e ideais. São também aquelas pessoas que nos provocam dor para nos ajudarem a ver o espelho da nossa própria fealdade”. As palavras sábias da Sacerdotisa do Prado de Açucenas faziam, agora, mais sentido ainda.

Enquanto não aprendermos com uma pessoa tudo o que tivermos a aprender com ela, ela não sai da nossa vida. Em tempos, o Rei da Chave Dourada acordara na Princesa o Amor e as memórias de unidade. Estaria ele, agora, a confrontá-la com o seu próprio lado obscuro e desarmonioso?

A Princesa estava convicta de que este era o passo mais difícil de dar. O de aceitar que a dor que a pessoa amada nos inflige, sistematicamente, poderá ser absolutamente necessária para chocalhar a nossa própria cegueira!

Preocupada com a sua possível deficiência, a Princesa dos Vulcões foi ao encontro de um Mestre, entendido sobre esta matéria, que morava num país distante do seu.

Esse homem tinha a particularidade de captar, no seu corpo, as verdades de cada pessoa, ajudando-as a resgatar a unidade perdida.

A Princesa decidiu assumir as rédeas da sua vida, para que mais ninguém pudesse magoá-la tão brutalmente. Com a atenção bem focalizada, releu, em muitos manuscritos mágicos, que todos aqueles que sofreram, ao longo da vida, a violência dos vulcões, têm em si a capacidade de destruir também e que, só assumindo essa capacidade, serão capazes de a transformar em força, impedindo, para sempre, que ela volte a fazer estragos.

Sem mais delongas, e munida de muitos conhecimentos, a Princesa viajou, determinada a perceber por que razão insistia em ver o mundo cor de rosa, tropeçando vezes sem conta em violentas deceções.

 

CAPÍTULO 13: REVELAÇÃO – A DUALIDADE DA PRINCESA DOS VULCÕES

De pé, em frente ao Mestre, a Princesa vibrava intensamente. Os seus olhos irradiavam luz e todo o seu corpo projetava ondas pequenas e rápidas de energia que, num ápice, atingiram o Mestre. Automaticamente, este começou a vibrar também, produzindo-se uma sintonia fora do comum.

Com o seu olhar penetrante e mente acutilante, o Mestre percebeu que os olhos da Princesa eram totalmente diferentes. O que veria ela com cada um deles?

“Sabias que os teus olhos são muito diferentes um do outro?”, perguntou ele. “Tenho uma ideia que sim. Inclusivamente, sinto que um deles respira melhor.”, Respondeu a Princesa. “Explora, então. Tapa um olho e observa-me só com o outro. Depois, troca. Vai-me falando do que vês.”, Instruiu o Mestre.

Assim foi. O resultado foi surpreendente. Com o olho esquerdo, a Princesa viu um homem bonito, cheio de luz. Com o direito, viu um homem demoníaco e assustador que provocou nela um desejo de fuga. O Mestre pediu que ela se desse tempo suficiente para ver melhor com aquele olho. E, gradualmente, a Princesa foi vendo um homem com medo, que a todo o momento podia fugir, deixando-a sozinha.

Nesta situação, reviu toda a sua história com o Grande Rei e com o Rei da Chave Dourada, lembrando-se de todas as vezes que ela se precipitou para os agarrar, com medo que eles fugissem. Sempre que isso acontecia, eles assustavam-se e largavam sobre ela o seu fogo devastador.

O Mestre e a Princesa vibravam cada vez mais. Quer um quer outro tinham vontade de fazer qualquer coisa porque a vibração tem semelhanças com o vulcão e isso produz uma grande irrequietude no corpo. O Mestre era mestre e nunca faria nada, nestas circunstâncias, porque sabia que era preciso conter a energia para que ela não se esgotasse, de repente. Por seu lado, a Princesa já tinha, vezes sem conta, atuado cedo demais por causa do medo e isso trouxera-lhe grandes dissabores. Por isso, ambos ficaram quietos, apreciando-se mutuamente, sentindo a alegria a crescer e a energia a criar raízes dentro de si.

“Se eu fosse o Rei da Chave Dourada e se tu avançasses para mim com toda essa energia vulcânica, eu acho que fugiria.”, Afirmou o Mestre, olhando-a seriamente.

“Mas porquê?”, questionou, incrédula, a Princesa.

“Porque o macho gosta de mostrar as suas asas e, se tu não lhe deres tempo, ele vai-se embora porque não se sente visto. Ele precisa de sentir e de exibir a sua força. Ele gosta de cortejar e estar seguro dos seus encantos. Portanto, Princesa, fica quieta e contém a tua força. Fica à frente de quem quer que seja o teu Rei e espera que chegue o momento oportuno para ambos coreografarem uma dança com sentido. Não és tu que ditas as regras do jogo. No amor, tem que se dar o encontro e, para isso, precisas de sossegar os teus medos e a tua impulsividade.” As palavras do Mestre encantavam a Princesa.

“Lembra-te que o fogo, quando intenso demais, pode destruir e ressequir a terra. Deixa que as tuas pernas se enraizem e possam conter essa energia. Para que o fogo se transforme em calor e produza doçura nos teus movimentos, é preciso tempo. E o tempo permitir-te-á sentir todas as partes que há em ti, incluindo o lado demoníaco que há pouco viste em mim, purificando o teu olhar de todos os medos e histórias passadas que já não existem. Só assim, poderás ver bem o teu amado, com todos os seus lados luminosos e obscuros, feios e bonitos. Experimenta agora. Olha para mim, convergindo o teu olhar. Não busques apenas ver o lado bonito, para que o feio não salte de repente e te transforme, novamente, numa menina vulnerável, de óculos de lentes cor de rosa.”

E a Princesa, emocionada com tão maravilhosa revelação, manteve-se firme e vibrante, à frente daquele homem forte e intenso. Ambos vibravam, mais intensamente ainda, e os seus olhos humedeceram-se de emoção e alegria. As gargalhadas da Princesa soaram mais alto porque o Mestre movimentava os seus braços como se fossem asas. Nesse momento, imaginou o Rei da Chave Dourada a mostrar-lhe as suas habilidades, exibindo o seu majestoso poder masculino.

A Princesa e o Mestre, sem se tocarem, despediram-se com um abraço no sorriso… e, à medida que se afastavam, cresciam duas árvores majestosas no lugar daquele encontro.

 

CAPÍTULO 14: A CHAVE DOURADA NASCE DA COMUNHÃO ENTRE OS OPOSTOS

De verdade em verdade, a Princesa chegava mais perto de si, travando agora intimidade com o seu lado demoníaco, capaz de incendiar. Ela era Aquela que dançava com os Vulcões e, por isso mesmo, continha em si todo o poder necessário para se proteger.

Agir por medo, antes do tempo, destruía seguramente alguns quadros bonitos da sua existência. E, por isso, nesses momentos, a sua energia era demoníaca e devastadora. A Princesa estava mais aliviada por perceber melhor a sua responsabilidade em toda a história que vivera com o Rei da Chave Dourada.

E, recordando-se de que tudo começara na Floresta Mágica, resolveu, mais uma vez, pedir ajuda à sábia Feiticeira, guardiã de muitas vivências e trabalhos mágicos sobre a grande procura do seu caminho de regresso a casa.

Com uma candeia de luz intensa, a Feiticeira conduziu a Princesa para um canto mágico da Floresta, onde estavam guardadas impressões de alguns dos seus velhos trabalhos. Num deles, a Princesa recordou o seu sonho de construir uma família. Nesse quadro, havia harmonia e pessoas felizes. Havia amor e muita, muita alegria.

Inesperadamente, a candeia entornou a sua intensa luz sobre uma parte obscura daquele quadro idílico, iluminando duas personagens estranhas que se ergueram num diálogo extraordinário.

Empurrada com toda a força para trás, a Princesa assistiu a uma longa conversa entre uma menina com a cabeça enfiada num caixote e um dançarino tribal.

“Olá! Eu sou uma menina com a cabeça enfiada num caixote, no meio de um cenário idílico. Não consigo ver a beleza e a força do cenário de vida que conquistei.

Sou uma menina brincalhona, capaz de criar um universo de coisas boas e sérias, mas esqueço-me de participar nele de olhos bem abertos e de pés assentes no chão.

Enquanto me escondo, estou protegida do impacto que tudo aquilo me provoca. Parece que tenho medo de perceber alguma desarmonia ou de perder tudo o que conquistei. Tenho medo que tudo não passe de uma ilusão.

Com a cabeça dentro do caixote, não permito que os outros encontrem o meu olhar e percebam o meu desejo e a minha vulnerabilidade. Eu acho que tenho medo que percebam que há em mim uma menina frágil e que se dececionem comigo por isso. Ao mesmo tempo, tenho medo de ficar muito cansada por ter que ser sempre muito crescida e muito perfeita. Tenho medo que os outros se vão embora quando descobrirem que, às vezes, sou insegura e me apetece ficar na concha. Tenho medo que esperem demais de mim… e de ver o amor do outro ruir à minha frente.”

Estupefacta, a Princesa percebia que aquela menina era ela mesma. O que dizia era-lhe muito familiar e pressentia que toda aquela cena iria trazer-lhe importantíssimas revelações.

“Estou cansada de lutar sozinha. Com a cabeça enfiada naquele caixote, não vejo a minha solidão. Não vejo que estou sozinha naquele sonho.

Com a cabeça escondida e a fazer macacadas, escondo aos outros o meu valor e o quanto tudo o que conquistei me saiu da pele e que, se alguém for negligente, me estará a fazer infinitamente mal.

Escondida, protejo-me da dor de ser humilhada no meu romantismo e na minha capacidade de sonhar. Tenho medo de ter que mostrar as garras, em vez de sorrisos, e, por isso, de ser abandonada.”

Tinha sido exactamente por isso que a Princesa não mostrara as garras ao seu amigo Rei. O medo que ele se fosse embora era tão grande, que, todas as vezes que ele fora incoerente, ela preferira olhá-lo apenas através do seu olho esquerdo, bonito e iluminado. Com isto, ela só tinha conseguido ficar vulnerável e destruída na sua confiança e boa fé.

“Para mim, amor e liberdade têm que estar juntos e tenho medo que não percebam isso. Preciso de uma família, mas não quero perder a liberdade. Enfiar a cabeça no caixote é uma manobra distrativa, para não ser levada demasiado a sério.

Sou uma menina com a cabeça enfiada num caixote e, por isso mesmo, os outros não me levam a sério. Com os olhos e o coração escondidos, não observo a minha obra nem observo os outros a observarem a minha obra. Nem a defendo se alguém ousar destruí-la. E, quando alguém o faz, sinto-me destruída por dentro e isolo-me a chorar.

De hoje em diante, quero estar no centro do jardim que construí, cheirando o perfume das flores e arrancando as ervas daninhas. Quero convidar algumas pessoas a entrarem nele e outras a saírem dele. Quero estar desperta, para não deixar que a harmonia deixe de existir, apesar de, às vezes, o jardim ficar menos florido por causa dos ciclos das estações.”

A Princesa sabia que, para isto, ela teria que seguir os conselhos do sábio Mestre, ganhando coragem para ver as coisas desarmoniosas da sua vida. Desta forma, elas deixariam de trabalhar à margem da sua consciência, dando-lhe força para trilhar o caminho da verdade.

E, nisto, saltou um ser demoníaco que estivera todo o tempo à margem do quadro idílico, espreitando persistentemente.

“Olá! Eu sou um dançarino tribal e o meu corpo de homem está escondido atrás de um máscara fria e de uma pele assexuada. Estou assustado e sou assustador. Estou de fora e espreito para um mundo de gente feliz. Não percebo esta linguagem. Não consigo entender o que fazem todos a dançarem juntos, em grande algazarra. Também nunca vi pessoas tão amorosas e com um ar tão sereno. Não me lembro de ter visto bebés tranquilos e sem medo. “

As lágrimas percorreram o rosto da Princesa, recordando-se da sua infância assustada por causa da violência do vulcão…

“Estou assustado com tudo isto, mas muito fascinado ao mesmo tempo. Gostava muito de arranjar maneira de lá entrar. Será que me aceitam? Como sou um bailarino pouco vulgar, é possível que eles parem de repente, mas também é normal ficarem surpreendidos com alguém que se apresenta de modo diferente. Por isso, até tenho uma boa arma. Ninguém poderá ver-me realmente através desta máscara. Se algo não correr bem, darei uns passos fantásticos de dança e encantarei toda a gente com a minha extraordinária habilidade. E, com a mesma ligeireza com que ousei entrar, sairei. Seria como um cometa que atravessa os céus quando todos o observam distraidamente. Será uma experiência inesquecível. Mas é triste, eu nem sequer estar lá o tempo suficiente para reparar na admiração deles por mim e poder acreditar que posso pertencer. Consola-me apenas o facto de que os terei marcado para sempre.

Eu vejo-os, mas ninguém me vê. Eles não percebem o meu sorriso, a minha respiração, não veem o meu sexo nem sabem como eu sou quando caminho normalmente, sem estes movimentos vulcânicos.

Não imaginam sequer que o meu rosto pode estar assustado ou amoroso, que consigo caminhar como um felino sensual ou como uma gazela assustada. Que posso estar muito quieto e triste, que posso sentir-me impotente e perdido ou que posso ter medo de mostrar o meu poder amoroso e sexual.”

Por instantes, a Princesa sentiu um grande orgulho na sua extraordinária habilidade para dançar com os vulcões. Ela aprendera os movimentos do fogo e usava-os para dançar e seduzir. Enquanto isso acontecia, podia sobreviver a todos os perigos.

“Eles não sabem que, por detrás desta máscara de dançarino guerreiro, pode estar um homem desejoso de viver no meio deles e ser adotado por eles, amado por eles. Eu gostaria de poder mostrar-lhes como também sou merecedor daquele quadro idílico e até de o recriar e enriquecer. Mas ainda é mais fácil estar de fora e aparecer só de vez em quando, escondido atrás da máscara.

Tenho uma inveja doida daquelas pessoas felizes. Apetece-me chegar ali e desestabilizar o ambiente. Quero ver se eles se mantêm assim tão lindos e tão perfeitos. Quero ver se aquilo é real ou ilusório. É que não vejo ninguém com problemas, com sobressaltos ou com ar menos feliz. E se eu for lá provocá-los? Manter-se-ão assim? O quadro é terrivelmente harmonioso. Nunca vi tal coisa!”

Recostada nos almofadões mágicos da Floresta, a Princesa teve um flash de todas as vezes que fora uma rebelde, desmontando, magistralmente, os quadros excessivamente perfeitos nos quais ela não podia entrar. Como era possível ela ter esquecido tudo isso?

Ela não era apenas a Princesa doce que todos gostariam que ela fosse. Ela era, às vezes, um demónio capaz de perturbar as consciências de muita gente. Essas peripécias trouxeram-lhe muitos dissabores e, por isso, retirara esse lado da sua consciência, transformando-o num comportamento independente e lutador.

Para voltar a recordar-se também desse seu lado, a vida trouxera-lhe o Rei da Chave Dourada que tinha sido, até então, incansável na sua magia e brincadeiras com o fogo.

Fascinada, a Princesa voltou a prender a sua atenção no extraordinário dançarino tribal.

“Acho que estou cansado de estar escondido. Estou farto de andar no mato a sobreviver ou nos palcos a representar. Gostava de viver numa família assim e ter um dia-a-dia mais vulgar. Sinto-me diferente deles e gostava de ser um igual… e de experimentar aquele calor.

Vendo bem, eles são todos muito intensos. Será que aguento aquilo? E se me sentir sufocado no meio daquelas regras que desconheço? Ser marginal dá um certo jeito. Não estou comprometido e posso ser livre.

Mas confesso que estou muito curioso e cansado de respirar mal, dentro desta máscara hermética. Os meus olhos doem-me de tanta vigilância e também acho que não é honesto da minha parte ver, sem ser visto. Eu posso chegar ali e desestabilizá-los e eles não podem fazer nada porque eu sou como um cometa, poderoso e inatingível. Nem sequer percebem nada das minhas intenções.

Estou farto de ser um marginal. Quero entrar.

Acho que sou parecido com a menina de cabeça enfiada no caixote. Vou arriscar entrar e aproximar-me dela.

Acho mesmo que somos parecidos e que nos podemos entender. Juntos, seremos capazes de arranjar maneira de nos entrosarmos naquele ambiente. Julgo que assim será mais fácil lidar com as emoções, no caso de elas serem muito fortes. Nesse caso, abraçamo-nos e protegemo-nos um ao outro. Eu sou fisicamente forte e estou habituado a rodopiar no espaço, a dançar loucamente, a atear fogueiras e a dar urros assustadores, a aparecer e a desaparecer deixando marcas profundas nas pessoas. Eu tenho poder para proteger a menina com a cabeça enfiada no caixote e posso ajudá-la a perder o medo de olhar para a frente.

E ela é amorosa, criativa e construtiva, para me ajudar a confiar num mundo melhor e a perder o medo de me mostrar e de me emocionar. Os olhos dela são doces e amorosos e vou deixá-la olhar para mim. Vou tirar a máscara e despir a pele assexuada, para que ela não se assuste. Vou também fazer isso por mim porque sei que o olhar dela é amoroso e curativo e vai maravilhar-se comigo e eu vou gostar mais de mim.

Eu ajudo-a a tirar a cabeça do caixote escuro e ela respeitar-me-á pelo que eu sou. Ela é a força amorosa e eu sou a força empreendedora. Juntos, faremos frente a todas as dificuldades e acolheremos o prazer.

Ambos amamos a liberdade e somos criativos. Ela consegue conceber um ambiente amoroso e protetor e eu consigo atravessar o céu e as florestas, sem me deixar ferir. Sou um guerreiro, capaz de enfrentar as situações mais difíceis e perigosas. Os meus movimentos são vigorosos e artísticos, capazes de encantar e seduzir. Ela é persistente e idealista e só concebe a vida com beleza e harmonia. Ela nunca escolhe o caminho fácil do comodismo e acredita no impossível.

Há em nós uma força capaz de materializar os sonhos, de fazer movimentos complexos e de mudar de espaço muito rapidamente. Há em nós o sonho e o instinto de sobrevivência e jamais deixaremos morrer os nossos ideais.”

Voltou a sentir-se a ventania das cores… e uma bolha azul e brilhante desenhou-se na atmosfera, envolvendo a menina e o dançarino num enorme abraço.

Os olhos da Princesa cresceram de espanto, sentindo, dentro do peito, uma esfera de luz. E, no horizonte que podia alcançar, duas árvores douradas contemplavam-se mutuamente, entrelaçando os seus galhos em perfeita harmonia.

 

CAPÍTULO 15: LIBERTAÇÃO DO FEITIÇO – A ESSÊNCIA DO AMOR

 

Fez-se silêncio.

Do interior da Princesa, ouvia-se o barulho compassado das ondas do mar e o esvoaçar de pássaros livres. Um pouco mais fundo, a terra húmida gemia de vida, dando à luz duas árvores lindíssimas, autónomas e cúmplices. Uma era feminina e doce, repleta de frutos suculentos. A outra era vigorosa e imponente, com galhos compridos e flexíveis que, de quando em vez, abraçavam a sua amiga, entrelaçando-se com ela. Olhando uma para a outra, apreciavam-se na sua diferença e amavam-se por isso.

Os olhos da Princesa que dançava com os Vulcões ganharam uma qualidade diferente. A solidão e o medo de outrora desapareceram, dando lugar à ternura e à tolerância.

Durante os primeiros tempos, depois da recente descoberta dos seus opostos, a Princesa entreteve-se a fazer inúmeras experiências. Umas vezes, olhava para as pessoas com um só olho, alternadamente, e, outras vezes, convergia o olhar. As diferenças eram extraordinárias. Da excessiva luz passava para a escuridão, para logo a seguir ver tudo nas devidas proporções. Aqui, os seus pés ficavam bem colados ao chão, surgindo, no lugar do medo, uma serenidade triste, própria de quem se encontra com a realidade.

Os últimos acontecimentos com o Rei da Chave Dourada tinham sido decisivos para o novo rumo da Princesa dos Vulcões. Mas como já conhecia os movimentos da vida, ela sabia que, mais tarde ou mais cedo, seria confrontada com novos desafios, para que pudesse por à prova a sua capacidade para vencer o feitiço.

A Princesa não se enganara. Pouco tempo depois, o Universo voltou a trazer notícias do menino Rei, através de faíscas luminosas de um fogo desejoso de brincar. Noutros tempos, a Princesa teria logo dado um passo para aproveitar a oportunidade de contacto. Desta vez, aguardou que o Rei se manifestasse claramente. Mas, como qualquer Rei que brinca com o Fogo, não o fez. Preferiu continuar a lançar faíscas pelo céu, aguardando, se calhar, que a Sabedoria do Universo se encarregasse do resto.

Inicialmente, a Princesa vibrou de alegria, mas logo caiu em si, reunindo todos os pedaços de sabedoria que adquirira ao longo da sua grande viagem, transformando-os numa chuva mágica que limpava todos os feitiços e apagava todos os fogos perigosos.

Assim que lançou a chuva mágica, as faíscas desapareceram para sempre e a Princesa desatou num pranto convulsivo. Por momentos, teve saudades do tempo em que percecionava a realidade que queria, bastando, para isso, um truque de olhar.

E o sonho? Onde ficaria ele?

Dentro de si, estava o sonho. A Princesa compreendera que tudo aquilo em que se podia acreditar era uma imagem da verdade porque tal como o amor não existia sem a raiva, nem o bonito sem o feio, também a realidade não vivia sem a imaginação, sendo esta capaz de recriar aquela e de a transformar.

Prova disso era o amor que a Princesa tinha vivido à distância, percorrendo caminhos mágicos que traziam e levavam sinais que a aproximavam do Rei da Chave Dourada. E, nesses encontros, a Princesa e o Rei experimentaram um pouco mais da magia e do feitiço que os unia e afastava.

Nesta dança, a Princesa revisitou o céu e o inferno e foi conhecendo o seu Eu mais profundo, carregado de velhas estórias de personagens fantásticos. A tensão em que vivia realizava a transformação, erguendo-se, dentro de si, um lugar que passaria a acolher o amor de uma maneira totalmente nova.

E o Rei? Que caminho estaria ele a fazer? Veria ele, na Princesa, o seu lado amoroso e romântico? Não sabia. Apenas intuía que um processo idêntico se estaria a passar na sua vida.

A importância do menino Rei na vida da Princesa não deixava dúvidas. Ele despertara nela o seu lado amoroso e sonhador e iluminara o seu lado mais obscuro e feio. Agora, ela sabia que a força destruidora do menino Rei estava também dentro de si e que tinha necessitado de a viver na pele, vezes sem conta, para ser capaz de se livrar das suas garras.

Nunca mais deixaria que o Rei da Chave Dourada se aproximasse dela da mesma maneira. Usaria a sua força de dançarino tribal para proteger a sua menina interior, amorosa e idealista. Com isto, o amor deixaria de ser uma vulnerabilidade e passaria a ser uma força.

A Chave Dourada não seria trazida pelo Rei, mas brotaria do casamento entre os seus próprios opostos… a árvore doce e suculenta e a árvore vigorosa e imponente… a menina com a cabeça enfiada no caixote e o dançarino tribal… a Rainha do Amor e da Fertilidade e o Rei da Guerra e do Fogo… todos unidos por uma esfera de luz.

Enquanto mirava a realidade com os seus novos olhos, a Princesa recordava mensagens de sábios antigos, que só agora tinham significado para ela. Uma delas dizia que só é possível sabermos o que é suficiente, se soubermos o que é mais do que suficiente e que é por isso que o caminho da verdade se faz sempre pelos meandros do excesso.

Envolta neste pensamento, a Princesa abraçou com ternura a primeira impressão forte que tivera do menino Rei… extremado nos seus desejos e nos seus sonhos, ousado e majestoso, sedutor e pueril.

Era uma vez… E não era uma vez…

São assim as estórias. São e não são. E, quando terminam, voltam ao princípio, num ponto mais acima, renascidas das cinzas, vestidas de branco.

Voltando ao princípio, a Princesa adormeceu. No sonho, alguém anunciou a morte da Rainha-mãe. Depois de muito chorar, a Princesa tinha que escolher entre dois homens, iguaizinhos ao Rei da Chave Dourada, mas diferentes no lugar que ocupavam na vida. Um estava atrás do outro. O de trás parecia triste e sabia-se que lutava ainda pela sobrevivência. O da frente vestia-se de branco e dirigia um grupo de pessoas, reunidas em círculo, que aprendiam o mistério da morte e do renascimento. A Princesa escolheu este homem, apesar da grande afinidade que sentia pelo homem mais triste.

O passado tinha morrido e a mãe simbólica dentro de si renascia, fortalecida, protegendo e vestindo de branco as suas escolhas.

De agora em diante, estava entregue a si mesma.

Tudo mudara e nada mudara. O seu amor pelo Rei da Chave Dourada era o mesmo e incondicional. Apenas mudara a cor com que o mesmo se vestia nos seus sonhos.

Fim

 

 

 

 

O Espaço da Relação

Aprendizagem do movimento e da autonomia, a partir de um vínculo seguro

(Workshop apresentado na XX Conferência Internacional de Análise Bioenergética, sob o tema “Corpo em Poesia”, em Búzios, Brasil.)

A relação precoce, nos primeiros 18 meses de vida, representa idealmente uma caminhada, entre a mãe e o bebé, baseada no suporte e na presença empática, capazes de permitir ao bebé uma entrega, sem medo, desde a fase de dependência simbiótica até à fase de diferenciação e individuação.

Neste tema, estão presentes, como pano de fundo, os pressupostos teóricos que se seguem.

O bebé nasce com uma bipolaridade tónica e fisiológica, através dos estados extremos designados de hipertonia e hipotonia. Até aos 2-3 meses, o bebé tem uma motricidade reflexa, não sendo capaz de passar progressivamente de um estado a outro, por falta de maturação neurológica. A “mãe” é o “continente” que permite que a criança relaxe e entre em estado de hipotonia.

O bebé nasce com hipertonia periférica (pernas e braços super ativos) e hipotensão axial (não pode suportar a cabeça, nem sentar-se, nem pôr-se de pé). Pouco a pouco, vai diminuindo a hipertonicidade periférica e aumentando a hipertonicidade axial, implicando uma repartição da tonicidade.

O bebé nasce com um centro energético ou eixo pulsátil, um grande tubo, responsável por toda a atividade metabólica, e que contém muitos outros tubos, com diferentes ritmos pulsatórios, que o bebé vai integrando pouco a pouco. As sensações internas desses ritmos são as primeiras sensações que existem, conferindo ao bebé a sensação de existência (sensibilidade interiocetiva).

Em termos embriológicos, todas as funções vitais estão em tubos, dentro do grande tubo pulsátil ou centro vital e, pouco a pouco, os tubos vão formando bolsas ou constrições, áreas corporais que permitem rotação.

À volta do centro vital existe o tecido tónico (musculatura). A energia produzida pelo metabolismo mobiliza a musculatura, seguindo duas leis: céfalo-caudal e próximo-distal.

O tecido tónico é composto por fascias e por músculos. A fascia é um invólucro, um tecido conjuntivo que envolve os músculos, desde a cabeça até aos pés, e tem 3 funções muito importantes: contenção, coordenação e transmissão. A fascia insere-se nos músculos apenas ao nível da zona ocular, do diafragma, da pélvis e dos pés. Quando se relaxa a zona ocular, o diafragma relaxa automaticamente por causa da função de transmissão da fascia. Portanto, cada vez que a cabeça do bebé cai e a mãe não protege, o bebé fica aterrorizado, com angústias inimagináveis. E, para suster a cabeça, começa a desenvolver hipertensão na zona ocular, tensionando também, automaticamente, o diafragma. A fascia proporciona a sensação de unidade corporal (sensibilidade propriocetiva).

A pele é também uma zona de contacto muito importante, permitindo a sensação de sensualidade (sensibilidade exteriocetiva). Um bebé que não é acariciado não desenvolve o seu erotismo.

O bebé de 2-3 meses não tem ainda maturação fisiológica para integrar as diferentes áreas sensoriais. Se a mãe não o ajuda, dando o suporte necessário e estando presente, o “programa” não se realiza.

Entre o 3º e o 6º mês, desenvolvem-se as interações relativas à psicomotricidade da cabeça e pescoço, o bebé começa a ter controlo voluntário da cabeça, buscando o rosto humano e começando a construir um vínculo com o mundo físico. Inicia-se, aqui, a estruturação espácio-temporal. Todas as patologias precoces têm a ver com a cabeça e com o pescoço. A capacidade para construir vínculos com os outros e consigo próprios será afetada.

O 6º mês é muito importante porque é um momento de conjunção tónica de todas as partes do corpo. O bebé começa a ser tonificado em todo o corpo, ainda que a tonicidade não seja suficiente para andar. Completa-se a maturação céfalo-caudal, próximo-distal e rotação sobre as constrições. Quando, nesta idade, o bebé explora todas as suas possibilidades de enrolar, distender-se e rodar, desenvolve a sensação de ter eixo. Neste momento, várias coisas estão de acordo: sensações primitivas de impulsos pulsáteis (sensações interiocetivas), sensações de eixo, de centro-periferia (sensações propriocetivas), construindo-se assim a vivência e organização da simetria que permite a lateralização, e sensações sensuais (sensibilidade exteriocetiva).

Aos 12 meses está tudo construído e o bebé pode pôr-se de pé: junção tónica, axialidade e simetria, permitindo coordenação. Estrutura espácio-temporal, junção tónica, axialidade, simetria e coordenação motora, tudo isto, em conjunto, permite ao bebé a vivência do EU e a sua diferenciação do OUTRO – Fase da Individuação e Diferenciação.

EM SÍNTESE

O bebé nasce adaptado em termos reflexos. Pouco a pouco, o programa reflexo desaparece e vai dando lugar à motricidade voluntária intencional. Interações visuais, sonoras, tónicas e emocionais entre a mãe e o bebé permitem a construção do vínculo, a partir do qual a criança desenvolve todas as suas potencialidades. A adoção de posturas e ritmos adequados, permite ao bebé sentir-se omnipotente e feliz, autoconfiante na sua exploração do mundo.

Se a relação simbiótica for deficiente, o bebé contrai-se para se autoproteger e fixa-se em posturas mais tensas, perdendo espontaneidade na exploração do mundo. Micro-terrores, micro-traumatismos, pouco a pouco, organizam uma resposta tónica na hipertonia. Todos os bebés que se sentem inseguros no colo da mãe procuram rigidificar a coluna, dando origem a adultos muito rígidos.

No trabalho proposto, a relação terapêutica recriada constitui uma oportunidade de construir o que faltou na relação simbiótica mãe-bebé: revivenciar o aspeto tónico e emocional presente na relação; fazer tudo com muita suavidade para que o paciente não se dissocie e deixe de sentir (trabalhar a contenção, ao nível das fascias); adaptar o ritmo, os movimentos e as posturas ao paciente; apoiá-lo na conquista da autonomia e deixá-lo ir.

Inicialmente, trabalha-se sobre a cabeça, seguindo-se os braços, o tronco e, por fim, o corpo todo, respeitando o sentido do desenvolvimento psicomotor da criança. Com a ajuda da música, “acréscimo de mãe boa”, cada um poderá ir mais longe na exploração das suas capacidades corporais, numa dança encantatória e comovente.

Espera-se que cada um consiga sentir a energia a fluir ao longo da coluna vertebral, experimentando a sensação de existência e de eixo; que tenha uma oportunidade de integrar ritmos e emoções, de consolidar a verticalidade, o grounding e, simultaneamente, experimentar a espontaneidade e a graça do corpo em movimento.

Reflete-se também sobre os sentimentos da “mãe” que, tal como o “bebé”, sai da relação simbiótica, conquistando autonomia. Nesta conquista, alguns experimentarão sentimentos de angústia de separação, tendo oportunidade de corrigir o que lhe faltou durante o seu próprio processo de vinculação. Outras pessoas experimentarão, em espelho, a alegria da entrega, o prazer da descoberta, confirmando a sua capacidade e validando, simultaneamente, a sua própria autoestima .

Acredito que o trabalho em espelho é muito sanador e revela como a relação mãe-bebé/terapeuta-paciente se pode transformar numa dança harmoniosa de crescimento e prazer mútuos.


 

O OLHAR NA ANÁLISE BIOENERGÉTICA *

O QUE O OLHAR PODE ALCANÇAR

Viajava com uma amiga, à procura de encontrar paisagens diferentes e algo de novo no horizonte.

De tempos a tempos, é preciso desfocar o olhar das rotinas e das emoções recorrentes que tardam em ser metabolizadas, dando origem a outras.

O movimento ajuda-me a sentir um pouco mais, a sair do impasse. Viajar, deixando para trás responsabilidades, permite-me estar a sós com o meu coração e olhar para ele, sem pressa. Um olhar de um estranho, numa cidade desconhecida, pode despoletar em mim um sonho, uma tristeza, uma alegria, uma grande inspiração criativa. Ou fazer-me recordar um medo e perceber um sem número de defesas que não me deixam ousar e ir mais além.

Por vezes, basta um movimento.

Outras vezes, basta uma palavra no momento certo, de olhos nos olhos. E o coração pode abrir-se. Assim aconteceu, já na descida para Lisboa.

A minha amiga, de aparência sempre altiva e segura, de palavras firmes e sábias, de sorriso discreto, de olhar escondido, de movimentos cansados, de coração trancado, de repente, depois de muitas conversas sobre o amor e sobre a confiança, ousou olhar-me e confiar (Olhar-se e confiar). A viagem estava no fim e era preciso que ela cumprisse a sua missão, tal como uma terapia que, ao aproximar-se do fim, leva o cliente a tocar nos seus jardins mais secretos, com medo de ir embora sem a grande resposta.

No seu olhar tímido e nos seus gestos comedidos, havia um pedido subtil de um conselho sábio. Mulher inteligente que soube proteger-se dos seus medos e que pressente que está na hora de ter coragem de se abrir e testar as próprias asas! Nesse pedido subtil, já se vislumbrava uma vulnerabilidade.

Com o meu feedback, fez-se um silêncio repleto de emoção. Os seus olhos encheram-se de lágrimas e de vida. Nunca foram tão grandes! O seu rosto ficou rosado e os seus movimentos, mais redondos e harmoniosos. Aquela mulher sábia e distante transformou-se, em segundos, numa mulher mais jovem e calorosa. Havia alegria e curiosidade no seu olhar e uma emoção enorme na sua voz que assumira uma tonalidade aveludada e profunda. Os minutos iam passando e ela tornava-se mais jovem ainda, uma menina. Os seus gestos eram espontâneos e a voz mais fresca, soando entre pequenas gargalhadas e silêncios cheios. De repente, uma vontade enorme de chorar. De felicidade. Admitir a possibilidade de voltar a ver aquele homem, de falar com ele, olhos nos olhos, foi suficiente para desencadear nela um fluxo vital. Tornar o passado presente e reviver o sentimento amoroso. Percebeu que estava cristalizada numa atitude defensiva e que tinha trancado o seu coração para não sofrer. Percebeu que é preciso abrir-se à possibilidade de sofrer de amor, para voltar a ser feliz e deixar para trás as idealizações responsáveis pelos seus movimentos cansados. “Nunca me pareceste tão humana”, disse-lhe eu. “És tão mais bonita, assim vulnerável. Mais feminina e próxima”. Nunca me tinha sentido tão próxima dela.

De facto, quando as portas estão mal fechadas, a vida fica interrompida e o corpo esmorece. É preciso voltar ao sítio onde a história ficou incompleta, para a poder resolver e integrar. Sentir a dor para voltar a ter prazer.

Ao sabor de uma respiração profunda e sincronizada, os nossos olhares mantiveram-se em contacto como duas mulheres que se respeitam. A sua confiança em mim emocionou-me muito. E, neste processo, levantou-se um véu sobre a resposta que procurei nesta viagem. A confiança. A intuição. Preciso de confiar na minha intuição e sabedoria e, com base nela, tomar a decisão mais difícil da minha vida. Abrir ou fechar completamente uma porta. É preciso ter a coragem de olhar para dentro e sentir todos os medos, todas as tristezas, todas as raivas, para limpar o canal da comunicação e estar livre para amar de novo. As grandes decisões são solitárias e a verdade nem sempre é linear. Os nossos mestres e pais internos dizem-nos, muitas vezes, para não fazer isto ou aquilo, para não sofrermos mais uma desproteção. Mas é preciso ouvir o coração atentamente e sacar-lhe a verdade, para que o olhar volte a ter brilho.

Algures as nossas histórias se assemelhavam. E cada uma de nós viu na outra o espelho da esperança, a possibilidade de reviver algo que está morto e precisa de ter vida. No fim da viagem, separámo-nos verdadeiramente. Cada uma está só, com a sua tarefa existencial. Os nossos olhares que, em tempos se fundiram, hoje estão mais límpidos e nós, individuadas.

Despedimo-nos com uma enorme gratidão. Ela foi com brilho nos olhos e com a certeza de que teria que finalizar um ciclo para um novo se poder iniciar. Eu fiquei com a plena noção da minha força e da minha solidão. Tudo farei para voltar a sentir o mar dentro de mim e as suas ondas refletidas no meu olhar.

Tenho-me debruçado sobre o olhar dos meus clientes, e do meu próprio, observando as transformações ao longo dos processos terapêuticos e, por vezes, durante uma mesma sessão. A terapia bioenergética, na sua dualidade de análise e trabalho corporal, tem efeitos extraordinariamente reparadores e transformadores. E tenho percebido que cada transformação num cliente é uma maravilhosa oportunidade de crescimento para mim própria, aprofundando cada vez mais o meu olhar e o meu sentir. É impossível ajudar um cliente sem sincronizar com ele as batidas do coração. É preciso fazer uma dança, simétrica, às vezes e, outras vezes, completamente assimétrica para produzir mudança criativa. Nesta dança, é impossível estar de fora. Há clientes que têm o olhar congelado no medo o qual, uma vez trabalhado, poderá descongelar, despertando a tristeza profunda ou até o prazer da alegria. Outros há que parecem estar radiantes de alegria, mostrando um olhar aparentemente vivo e aberto e, através da mobilização da alegria, é possível reencontrarem o medo há muito reprimido. É preciso ir atrás do que o cliente nos traz, embarcar com ele no mar do espectro emocional dor/prazer. Não é possível resgatar o prazer sem passar pelos núcleos de dor e angústia. E, neste trabalho, tenho percebido que é fundamental levar os meus clientes a focalizar. Os meus olhos servem de espelho refletor do seu estado de alma. Outras vezes, reflito eu diferentes olhares, sobretudo olhares significativos para cada cliente, para que revivam algo que ficou esquecido. Os olhos são um portal para o mundo inconsciente e confrontam o cliente com a verdade. O terapeuta precisa de ter o olhar límpido e descontaminado para poder refletir com a máxima qualidade!

DEPOIS DO MEDO, NÃO HÁ MAIS MEDO…E O CORPO PODE DANÇAR

C., de 28 anos de idade, frequenta um programa de reabilitação por consumo de heroína, há cerca de 6 meses e está em terapia comigo. É um homem com muitas dificuldades sociais, entrando facilmente em pânico perante o conflito ou perante uma simples crítica. Nesse dia, entrou em pânico. Grande evolução. Em situações anteriores idênticas, ter-se-ia isolado e teria recaído. Nesse dia, procurou-me, cambaleando de tonturas, cabisbaixo, com mão no peito e a proferir palavras de desespero “estou muito mal; não consigo; não aguento; não posso”. Mal respirava e os seus olhos reviravam-se como se fosse desmaiar. Apesar de se ter dirigido à consulta, o seu corpo apresentava sinais de fuga. Não me olhava, abanava a cabeça, o seu corpo pendia assimetricamente para um dos lados, sentando-se perto da porta. Com a mão no peito, soltava gritos de dor. Não tinha consumido e isso era extraordinário. Fi-lo sentar-se e olhar para mim, respirando. Não conseguia fazê-lo mais do que 2 ou 3 segundos. Em cada inspiração e expiração, o peito e o estômago doíam-lhe sobremaneira. Massajei-lhe o pescoço, dando-lhe suporte na testa. Incentivei-o a abrir os olhos e a respirar, enquanto lhe massajava o pescoço e os músculos dos ombros. Ele gritava de dor. Pedi-lhe para mobilizar os ombros e os braços, soltando gritos; de pé, pedi-lhe que fizesse tudo isso e soltasse as pernas também. Era excessivo. Ficava tonto e cambaleava. Fi-lo deitar-se e, com firmeza, segurei-lhe o pescoço com uma mão e, com a outra, trabalhei-lhe alternadamente os músculos do pescoço, do peito, do diafragma, incentivando-o a respirar e a abrir os olhos, olhando para mim. Olhei-o com muita compreensão e, numa voz firme e tranquila, incentivava-o a respirar e a olhar-me sem medo. C. contorcia-se de dor e todo o seu corpo tremia, desde o maxilar, às mãos, braços e pernas. Enquanto se contorcia, era impossível abrir os olhos. Ele não podia ver o tamanho da sua dor. A minha voz, firme, tranquila e maternal, substituía o olhar. Ia-lhe dizendo que o frio era o medo a descongelar e que, no fim, o seu corpo ia aquecer. Expliquei-lhe, com muita tranquilidade, que o seu medo era muito grande e que era muito antigo e que era muito bom ele estar a descongelar. As dores do seu corpo deviam-se às fortes tensões crónicas musculares que, neste momento, estavam a ser atravessadas por ondas respiratórias mais intensas. Era importante segurá-lo com firmeza porque o pânico era tão intenso que parecia que o seu corpo se fragmentava em agonia. Continuei a ajudá-lo a respirar enquanto lhe pressionava os músculos do pescoço, da base do crânio, dos maxilares, do peito e do diafragma. As tremuras continuavam, mas as lágrimas começaram a correr. O choro tornou-se mais fluído, embora ainda longe daquele choro que se parece com um rio de água corrente. E neste vai vem de lágrimas e gritos, C. fala da culpa. Que estragou a vida dele, que era um fraco e que tinha muito medo de encarar as pessoas, que tinha vergonha, que tinha muita vergonha. Num ritmo contínuo, mas tranquilo, incentivava-o a respirar, pressionando-lhe os músculos, e dizia-lhe que ele tinha sido muito corajoso em vir à consulta, em não ter fugido, em ter encarado o medo. Que ele estava a tocar o seu medo mais terrível e mais antigo e que só é possível voltar a ter prazer, depois de atravessar o medo e a dor. E que eu acreditava que ele ia ser capaz. Só o deixaria ir embora depois de ele aquecer e se acalmar e ser capaz de olhar para mim, sem fugir com o seu olhar, para ser capaz de ver o seu medo e a sua tristeza profunda, e de ver também o resultado disso.

O seu corpo começou gradualmente a aquecer e a sua respiração tornou-se mais profunda. Os sons adquiriram uma tonalidade mais tranquila e o choro irrompeu como acontece a uma criança consciente da sua dor, da sua perda. Enquanto soluçava, olhava para mim e dizia “Bati no fundo”. Ajudei-o a respirar comigo, olhos nos olhos, transmitindo-lhe compreensão e confiança. Devolvi-lhe que a sua respiração estava mais fluida e profunda e que o seu corpo já não tremia e que os seus olhos estavam presentes e muito tristes. Nunca o tinha visto tão digno, tão presente! Já não sentia dor no peito e no estômago, ao respirar. De tempos a tempos, soluçava como uma criança depois de um grande choro convulsivo. E era gratificante ver que o seu diafragma respirava melhor, apesar da grande tensão que ainda tinha e que teria por muito tempo… ou até para sempre.

Fi-lo levantar-se e ficar em grounding, sempre mantendo o contacto visual comigo e respirando. Pedi-lhe que sacudisse o corpo, braços e pernas. Que soltasse as pernas intensamente e emitisse sons bem alto, olhando para mim. Grounding. Voltar a fazer os movimentos e os sons. Grounding novamente. Já não tinha tonturas. O seu olhar era outro. Brilhava e estava grande. Apareceram laivos de alegria e, com graça, voltou a saltar, como uma criança a descobrir o seu corpo. Ria-se e dizia que estava a gostar de fazer judiarias com o seu corpo. E tentava ousar cada vez mais. Em grounding, o seu corpo estava direito, como um homem íntegro.

Sentámo-nos e C. falou do seu bem-estar. Que se sentia leve e que aquele aperto tinha desaparecido. E que já era possível olhar-me, sem vergonha. Agradeceu-me profundamente. Mais uma vez fiz-lhe a leitura do que tinha acontecido e ele percebeu que o poço que é cavado pelo medo e pela tristeza é o mesmo que se encherá de alegria. É preciso atravessar o medo e, depois do medo, não há mais medo.

No início da sessão, C. encontrava-se no extremo esquerdo do espectro dor/prazer de que fala Lowen no seu livro “Prazer”. Depois desta sessão, que durou 2 horas, respirava melhor, os seus movimentos eram mais espontâneos e harmoniosos e o seu olhar estava vivo, alegre e presente. Sentia prazer e alegria. Terminou a sessão, falando do seu filho de 2 anos. Queria ser um bom pai e ter mais paciência com ele. Levei-o até ao espelho e sugeri-lhe que olhasse para si e cumprimentasse o novo homem. “Olá, C.!Olha para ti. Perdeste muito tempo. Ganha juízo. Tens um filho pequeno e és responsável. Muda de vida”, disse ele. “Vê como está diferente, C.?”, perguntei-lhe eu. “Estou. Estou mais vivo e já não sinto aquele aperto dentro de mim”.

Fiquei a observá-lo a ir-se embora. Movimentava-se pelo corredor, de costas direitas e cabeça erguida, e os seus braços acompanhavam harmoniosamente o ritmo das suas pernas. Em voz alta e bem colocada, despedia-se das enfermeiras daquele serviço. Notava-se uma vibração alegre e eu fiquei muito emocionada.

Na sessão seguinte, C. entrou com visível alegria e vitalidade. Falou imenso, sempre mantendo o contacto comigo, e contou as grandes novidades da semana: que passou a ter mais fome e a comer com muito apetite e que as dores de estômago tinham desaparecido, que falou muito no serviço dele, e sem medo, que brincou com os colegas, que se fartou de brincar com o filho e que, pela primeira vez, tinha olhado para os seus olhos. Contou também que fez imensas judiarias com o corpo – alguns dos exercícios que tínhamos feito aqui e outros que ele e o filho inventaram. Rebolou no chão e cantou muito. Reconheceu que quando os fantasmas interiores se diluem, é mais fácil estar disponível para os outros. É como se visse melhor. Nesta sessão, falou de coisas que lhe davam prazer e que tinha abandonado durante anos, e que iria retomá-las. Levou-me umas pedras lindas, pintadas por ele, que simbolizavam as suas vivências prazenteiras e dolorosas. Queria muito olhar para elas para nunca mais se esquecer do que sofreu e do que lhe dá prazer de viver. Nesta sessão, fizemos alguns exercícios corporais porque ele estava muito alegre e queria mexer-se. Desatou a inventar exercícios e eu fui atrás. Entretanto, um dos movimentos era o famoso twist, o que nos inspirou aos dois. Fartou-se de dançar e cantar. Nos movimentos mais lentos, cantou canções da sua terra.

Até aqui, pensei que este era um homem sem simbolismo. Com o descongelamento do medo, apareceu o seu lado alegre e criativo, o seu lado profundo e espiritual. O seu olhar mudou muitíssimo, passando a ver mais longe e mais fundo, passando a ver as pessoas e os objectos mais nítidos e a ver coisas que nunca tinha visto antes, como, por exemplo, o olhar curioso do filho. O olhar baço e esquivo transformou-se num olhar mais alegre e sem fuga. O seu estômago doente ganhara apetite e até engordara nos últimos dias. É incrível como tudo o que se passa nos órgãos internos, se reflete nos olhos. Um corpo com dores é um corpo com medo. Todos os seus músculos externos e internos estavam espásticos, afetando o funcionamento dos seus órgãos internos e refletindo um olhar baço e sem vida. Depois deste trabalho intenso, o funcionamento do seu organismo melhorou
substancialmente, refletindo também um olhar mais suave e vital, em perfeita presença.

Este é apenas o início do degelo. Durante uns tempos, C. saboreará o prazer da vitalidade e edificará um pouco mais a sua auto-estima. Estou consciente de que este é apenas o início de um trabalho longo e doloroso.

Foi muito importante fazê-lo olhar para mim. Nesse contacto, o cliente fica mais consciente do seu sentir. Fechar os olhos é não querer ver, é não querer sentir. Simultaneamente, o olhar empático, amoroso e tranquilo do terapeuta pode ser curativo e fazer o cliente perceber a outra dimensão da vida, que há pessoas capazes de amar e confirmar a sua existência. Entreguei-me muito a este trabalho. No final, os meus olhos estavam húmidos e senti-me mais humana. Respirava melhor e, quando caminhava em direção a casa, senti os meus passos firmes, num movimento harmonioso e sem pressa. Perante a dor de um ser humano e perante o milagre da transformação tudo fica tão relativo!

A PELE TAMBÉM VÊ

B. é um homem de 50 anos, cego de nascença, com uma estrutura defensiva marcadamente masoquista e esquizóide. O trabalho com ele tem sido dificílimo e fascinante ao mesmo tempo. Tem exigido de mim uma enorme criatividade e flexibilidade. É, muitas vezes, difícil perceber se se deve trabalhar o contacto e a aceitação incondicional ou se é melhor confrontar as defesas masoquistas, sinalizando a sua hostilidade terrível. Um engano provoca um grande sentimento de incompreensão. Outras vezes, o confronto é necessário, mas desencadeia nele uma atitude manipuladora, de vitimização e tentativa de culpabilização da terapeuta “és uma mãe má”. B. tem um raciocínio extremamente lógico e racional, o que dificulta imenso o trabalho. Preciso de estar muito centrada para, a todo o momento, surpreendê-lo e ajudá-lo a tomar consciência das suas emoções, do seu verdadeiro self escondido por trás da sua enorme armadura. O medo esconde a raiva assassina e paralisa-o. Em termos contratransferenciais, sinto uma grande impotência, e isso é riquíssimo. Faz-me mergulhar num trabalho de escavação profunda e de lapidação de um diamante em bruto. Outras vezes, é a hostilidade que esconde o medo e a vital necessidade de contacto. Aqui, preciso de estar disponível e de coração muito aberto, para não morder a isca que ele me lança para o rejeitar.

A dança com este cliente é muito particular porque ora envolve movimentos muito lentos, simples e regressivos, ora envolve movimentos fortes. O trabalho de descongelamento do medo e de criação de um espaço afetivo de aceitação incondicional que apoie a redescoberta da espontaneidade da criança tem sido o meu grande objetivo para este processo terapêutico. Faltou a este cliente o sentido da visão, o contacto de pele e o olhar atento dos pais direcionado para as suas necessidades vitais. A ausência de referenciais deixaram-no numa situação de medo permanente, sem orientação. Ajudá-lo a descobrir cada parte do corpo, os movimentos de gatinhar, de levantar e baixar, de levar à boca, de cuspir, de afastar e de chamar, de saltar e rebolar, de fazer sons, de tocar e explorar, de brincar, e a minha confirmação constante dessa descoberta, permite ajudá-lo a estruturar referenciais corporais e a aumentar o seu sentimento de existência. A pele também vê e, no contacto com esse espelho, a emoção surge. O seu “olhar” é de uma riqueza sem tamanho e tem-me ensinado muito a ver com os olhos de dentro!

Nesse dia B. trazia uma vivência profissional de humilhação e encurralamento. O seu relato foi breve, ao contrário do que acontecia na maior parte das sessões, e o tom da sua voz traduzia cansaço e desânimo. O seu corpo pendia como um fardo, com um olhar para um horizonte escuro sem norte nem sul. À minha frente estava um homem perdido e profundamente só. Quase uma inexistência. Fazia silêncio porque a inexistência não tem palavras. Senti uma profunda tristeza e um impulso enorme para o proteger. Ao mesmo tempo, tinha consciência de que aquele colo que eu lhe podia dar não teria a ressonância necessária. Seria preciso, simbolicamente, morrer e nascer de novo, para sentir o prazer e o calor de ser recebido com alegria.

Deitei-o e suportei-lhe a cabeça. Os músculos do pescoço pareciam cordas grossas. A tensão era fortíssima. Enquanto massajava os seus músculos, incentivava-o a soltar a voz. Apenas saía um sorriso defensivo e um riso de cócegas, ao mesmo tempo que encaixava o pescoço nos ombros e contorcia o seu corpo. Pressionava mais e ele continuava a contorcer-se de cócegas, com um sorriso de submissão. B. é um homem alto e forte, quase o dobro de mim. Pressionei ainda com mais força. A dor era visível, mas a sua atitude continuava a ser de submissão e de paralisação total. O que levaria este homem a não ser capaz de me tirar as mãos do seu pescoço e a submeter-se àquela violência sem qualquer resistência? Eu podia matá-lo se quisesse. Devolvi-lhe isso e ele respondeu: ”já senti esse medo. Tive medo que o meu pai me matasse”. “Como foi isso, B?”, perguntei-lhe. “Um dia, ele agarrou-me pelo pescoço e levantou-me. Tive tanto medo que pedi desculpa por uma coisa que não merecia pedido de desculpa”, respondeu com aquele sorriso meio sarcástico. “O que sentiu?” “Humilhação e muita revolta comigo mesmo, por me ter submetido”. E o seu rosto encheu-se de uma enorme tristeza, apesar do sorriso persistente. Fi-lo respirar um pouco, nesse silêncio, para sentir mais. Todo o corpo apresentava uma tensão enorme, como se estivesse preso, encurralado, e não se pudesse mexer. Pedi-lhe que mobilizasse o seu corpo todo. E ele mexia-se pouco. Desistia facilmente, esperando as minhas instruções, como se o corpo não soubesse o caminho. Pedi-lhe, então, que esperneasse, esbracejasse e soltasse a voz. Ele fazia-o enérgica, mas mecanicamente. Simulei que lhe apertava o pescoço, como o pai o tinha feito. Pedi-lhe que sentisse um pouco isso, antes de reagir. Encolheu o pescoço e sorriu, submissamente. O corpo ficou paralisado. As mãos e os pés ficaram rígidos e levantados como uns olhos com medo. Incentivei-o energicamente a reagir depressa, agarrando as minhas mãos e afastando-me. Lembrei-o que ele tinha mais força que eu e que, se ele quisesse, eu não podia, nunca, sequer chegar perto. Ele fê-lo como um menino obediente e logo se punha a jeito para eu voltar lá com as mãos.

A imobilidade era de tal ordem que resolvi mudar a estratégia. Senti que era preciso levá-lo a fazer exercícios sem conotação emocional porque esta provocava-lhe um medo paralisante: exercícios de mobilização do corpo todo, num contexto lúdico e com instruções claras, estimulando-o a empolgar-se cada vez mais. De cada vez que sentisse uma parte do seu corpo a ser tocada, teria que a mexer ou sacudir. E fui criando, assim, uma série de situações a um ritmo crescente de velocidade, de uma forma distraidamente lúdica, e para que ele pudesse desmultiplicar a sua energia até ao ponto de reagir espontaneamente a uma investida mais violenta da minha parte, sem que ele tivesse tempo de se defender. Assim foi. Comecei por deixar cair almofadas em partes do seu corpo, toques subtis, toques mais fortes, toques diferentes ao mesmo tempo em partes diferentes do corpo, etc. A dada altura, “sufoquei-o” com almofadas, pondo todo o meu peso em cima dele para o encurralar e ele desatou a sacudir-me. Insisti várias vezes, cada vez mais criativa na minha malvadez. Fui ao pescoço dele e ele segurou-me e empurrou-me logo a seguir, soltando um pouco mais a sua voz. Continuei a atacá-lo, sendo mais invasora, instigando-o a reagir com a mesma vitalidade. O cansaço era grande, mas ousei ir cada vez mais longe porque senti que B. ainda não tinha entrado em contacto com a raiva. Para além disso, era um menino bem comportado e faria o exercício mecanicamente, até ao fim da sessão, caso fosse necessário.

E nesta dança de pura sobrevivência, o meu instinto levou-me a apertar-lhe o pescoço com uma das mãos e a tapar-lhe os olhos com a outra. A sua voz soltou-se como nunca tinha acontecido antes e, com gestos largos, atirou-me, num só golpe, para o chão. “Boa, B., boa! Nunca mais vai deixar que lhe façam mal!”. Respirava intensa e profundamente. O seu corpo movia-se, solto e harmonioso. O sorriso tinha desaparecido por completo. À medida que os minutos passavam, o seu rosto ficava com ar mais grave e o pescoço latejava como um coração acelerado. Devagarinho, coloquei-lhe a mão debaixo da nuca e pedi-lhe que olhasse na minha direcção. “Olhe para mim, B”. A sua cabeça moveu-se, buscando o meu rosto e a tristeza profunda estava estampada no seu rosto e nos seus olhos brancos. Incrível como havia tristeza no olhar! Os olhos ficaram húmidos, mas não conseguia chorar. Tem uma dificuldade orgânica em chorar. A boca tinha uma expressão diferente.

O trabalho corporal intenso ajudara este cliente a sair da paralisação do medo, a mobilizar a sua energia de sobrevivência (raiva) e, finalmente, a sentir a tristeza. Tapar-lhe os olhos ao mesmo tempo que lhe apertava o pescoço atualizou a sua vivência de terror e deu-lhe a plena consciência da sua cegueira e da imensidão da sua desproteção. Quando, no início da consulta, falou do seu encurralamento e de se sentir completamente perdido, e do seu corpo falar de tudo isso, não imaginava que o trabalho bioenergético pudesse levar-nos tão longe! Mas, entretanto, o seu pescoço foi-me falando desse encurralamento e os seus olhos, juntamente com a sua atitude corporal, de desorientação. O seu olhar branco, sempre em busca de algo, chamava-me a atenção. Havia ali uma barreira. Essa falta de contacto comigo perturbava a minha compreensão e o meu envolvimento empático. Fazê-lo olhar para mim, como se me visse, ajudou-me a estar mais próxima e ajudou-o a ele a conectar-se mais profundamente com o seu sentimento. Respirámos juntos, olhando-nos nos olhos da alma. A minha mão na sua nuca dava-lhe um grande sentimento de proteção e de confirmação da sua existência.

REVELAÇÃO

A. é um homem de 30 anos, fotógrafo. É estrábico, tem uma flagrante assimetria nos olhos e tensões fortíssimas em todo o corpo. Em grounding, verga-se para a frente e para um dos lados, olhando por cima dos seus olhos estrábicos. Quando respira, franze a testa como se sentisse dor e abre a boca como um animal ferido e enraivecido. O som sai com dificuldade, como se fosse um grito de dor. Os pés são arqueados, mal tocando o chão, o pescoço é um bloco imóvel encaixado nos ombros erguidos e a respiração é superficial. As pernas são muito tensas e apresentam reduzida flexibilidade. Altamente sedutor e controlador nas suas relações, liga-se aos outros, pela cabeça. Do ponto de vista psicológico, é também muito rígido e inflexível. Um dia, fiz-lhe o espelho da sua postura e ficou muito impressionado, dizendo: “não há integridade na minha postura”. Chamou-me a atenção um aspeto: procura alcançar, em tudo o que faz, a maior qualidade e pediu-me que o ajudasse a detetar as suas batotas.

Quando se movimenta em direção a mim, vem aos ziguezagues e pisca os olhos alternadamente como quem faz um jogo de esconde-esconde. Eu viro-me de frente para ele e ele foge outra vez, posicionando-se de lado para eu não o ver e ele me poder espreitar e manipular. Fico tonta e com uma enorme tensão nos olhos. Peço-lhe que me focalize e respire. Fica assustado e foge de diversas maneiras; fala imenso, coça a cabeça, revira os olhos de sono e boceja, pisa o chão com força para sentir mais os pés. Um desassossego. Defende-se com a conversa, sendo bastante eloquente e quase impossível de o deter.

Este cliente durante muito tempo não  me olhava verdadeiramente. Quando falava comigo, desfocava. Um dia, encontrou-me na rua e não me reconheceu. Construiu uma imagem de mim que não era eu. Falava de mulheres que eram de uma maneira e, afinal, eram totalmente diferentes. Os seus olhos estavam tão desfocados que as suas perceções o enganavam. A sua consciência emocional era quase nula. Por baixo daquela capa de sedução e brilhantismo intelectual, percebi nele um medo de morte e uma raiva muito primitiva.

Tenho desenvolvido com este cliente um trabalho de consciencialização do corpo e de aumento gradual da vitalidade, bem como um trabalho sobre o contacto. É um trabalho subtil e, dado o enorme simbolismo deste cliente, os seus insights são imensos e ricos. Os olhos deste homem têm-me conduzido por inúmeros cenários onde nos temos encontrado e surpreendido.

Naquele dia, A. estava aparentemente bem, sem nada de especial para trabalhar. Pedi-lhe então que olhasse para mim e respirasse, para percebermos melhor o que poderia precisar nesse dia. A dificuldade do contacto era evidente, pela desfocagem, pela falta de emoção no olhar e pela respiração superficial acompanhada de tensão nos ombros. No entanto, referiu que estava bem e que se sentia bem comigo, apesar de reconhecer o desconforto de olhar para mim.

Propus-lhe um trabalho sobre a construção do vínculo ao longo da primeira infância. Iríamos situar-nos no tempo em que ainda não havia palavras e a relação se estabelecia ao nível sensorial e emocional. Regressaríamos ao tempo em que se aprende a empatia, através da sincronização do olhar, da respiração, dos movimentos, numa dança amorosa e prazenteira. O tempo em que o olhar da criança é enorme e lúcido, capaz de compreender todas as verdades e todas as mentiras. Faríamos um regresso à idade da inocência. Ficámos sentados frente a frente, em contacto visual e sincronizando a respiração. A assimetria do seu olhar estava muito acentuada.  Esta situação provocava em A. uma necessidade imediata de fuga, pelo que lhe sugeri que pusesse as mãos à frente e, atrás dos dedos, espreitasse a mãe, em segurança. Eu não o veria, mas ele poderia ver-me e olhar-me nos olhos sem medo, explorando o olhar da mãe e o seu próprio. Assim o fez. Percebi que ele estava a tirar partido da experiência, brincando e colocando as mãos em diversos ângulos. Deixei-o ficar bastante tempo, enquanto o meu olhar se mantinha caloroso. Percebi que ele estava confiante, provavelmente por estar em contacto, mas poder controlar sem ser controlado, e que poderíamos passar à etapa seguinte. Agora, o objetivo era ele captar o olhar da mãe distraída e desatenta.  O estrabismo deste cliente e a sua fuga sistemática ao contacto intrigavam-me. Seria o olhar da mãe aterrador? Para onde olharia ela quando tratava do seu bebé? E decidi explorar. Comecei por estar apenas distraída, olhando para o lado. Ele buscava o meu olhar insistentemente. Assim que eu correspondia, esboçava um sorriso de satisfação e imediatamente começava a fazer macacadas defensivas. Nesse momento, eu voltava a olhar para outro lado e ele voltava a buscar-me insistentemente. Eu fugia cada vez mais, para o estimular. Percebi que A. estava a gostar da brincadeira e que ainda não tínhamos tocado no ponto crucial. Mas deixei-me levar pela brincadeira, para que ele entrasse cada vez mais no exercício e não tivesse necessidade de controlar racionalmente este trabalho. A dada altura, quando ele conseguia que eu olhasse para ele, ousei fazer olhares diferentes.  De zanga, de tristeza, de medo e outros mais brincalhões. Ao olhar de zanga, tristeza e medo ele respondia com brincadeira, para me demover, e com uma zanga estudada e fingida. Ao olhar brincalhão, respondia com brincadeira.

Continuava a sentir que o contacto conseguido era muito superficial e que as reações de A. aos meus olhares eram mais ou menos defensivos. Nenhum daqueles olhares lhe provocava medo ou descontrolo. Todos eles envolviam contacto. Teria que experimentar a ausência de contacto, mas olhando para ele. Teria que desfocar o meu olhar como ele o fazia e, quem sabe, a própria mãe. Assim fiz. Via apenas uma mancha e senti no meu corpo uma energia muito reduzida. Senti-me como se não estivesse ali. A. teve uma reação absolutamente surpreendente. Agarrou em mim com força, como se tivesse garras e desatou a gritar. Mantive o olhar desfocado e deixei que ele desesperasse mais. O seu grito era cada vez mais intenso e a força com que me agarrava, maior ainda. Depois, foquei-o e vi o seu olhar plenamente em contacto, desesperado como uma animal ferido e a pedir socorro. Um misto de medo, de raiva e de apelo de sobrevivência. Fiz um olhar atento e protetor, mas ele não via. Continuou a abanar-me, cada vez mais zangado e próximo, enfiando as garras nos meus braços. Os seus olhos ficaram enormes, os dois do mesmo tamanho, e completamente focados. O estrabismo desaparecera quase por completo. Eu continuei presente, para que ele pudesse deixar de ter medo e se permitisse zangar sem sentir perigo. Isto durou uns minutos. Quando a raiva assumiu proporções mais violentas, parou bruscamente o exercício, afirmando espantado: “Goretti, isto mexeu mesmo comigo. O seu olhar era aterrador! Senti-me desamparado e terrivelmente zangado, como se estivesse a correr perigo. Foi forte. Que exercício! Parabéns, Goretti!”. Não resistiu a elogiar-me. “Sabia que o seu olhar é igual a esse olhar? Sinto muitas vezes que não me vê e que o seu contacto comigo é muito superficial”, retorqui-lhe com serenidade e firmeza. Ficou sem palavras, olhando para mim e, de repente, percebi-lhe uma tristeza. A., que tem sempre um argumento e uma racionalização a fazer, ficou sem palavras. A seguir, falou das sua relações com as mulheres e compreendeu que sempre foram funcionais. Desfazia-se em gentilezas, mas isso não eram mais do que manobras sofisticadas para as manter à distância e controladas. Conduzia as relações pela cabeça, sendo o mais perfeito dos homens, mas não sentia nada e as necessidades delas não eram sequer tidas em conta, tal como a mãe fazia com ele. Nesses processos sofisticados de manipulação, não olhava para elas, para além de escolher sempre mulheres dependentes e com baixa auto-estima que receavam não estar à sua altura. Um dia, uma delas, por quem pensou ter-se apaixonado, foi-se embora e ele perdeu o chão. Foi nessa altura que procurou a terapia.

Pedi-lhe que olhasse para mim. Os seus olhos mantinham-se mais vivos e centrados, apesar da evidente tristeza. Devolvi-lhe o quão gratificante era vê-lo assim tão integrado e tão perto de si próprio. De mim, também estava mais perto porque percebia agora que não se defendia, nem me tentava agradar. Nesse instante, segurou-me nas mãos e percebi-lhe uma ternura verdadeira no olhar. “Obrigada, Goretti. Foi muito bom ter sentido e compreendido um pouco mais. Mas acredito que talvez nunca seja capaz de mergulhar na intimidade com alguém. Isto é possivelmente o mais longe que conseguirei ir.”

Nestes momentos de verdade, sinto que o silêncio e o olhar empático são a única coisa a fazer. É preciso aceitar que os nossos clientes possam não ir tão longe quanto gostaríamos. E nesse momento de verdade, encontrei-me também com a minha própria tristeza, com a minha impotência. Fiquei um pouco com a minha criança interna, a recordar os meus sonhos de amor e as minhas separações, compreendendo que nem sempre é possível para o outro confiar e deixar-se amar. Serei eu capaz também?

Hoje em dia, é interessante constatar como A. tem modificado o seu olhar sobre a vida. Consegue olhar para os olhos dos pais e vê-los a eles, distanciadamente, sem ressentimento. Muitas vezes, deambula pela cidade, observando as pessoas e vendo coisas pela primeira vez. Teve um período em que nem conseguia formular muito bem as suas ideias. A eloquência que lhe era peculiar deu lugar ao ver e ao sentir, e parecia fascinado. Entretinha-se a observar o rosto de velhos amigos e descobriu que eles eram totalmente desconhecidos e que, com o passar dos tempos, não tinham rigorosamente nada a ver com ele. A coisa mais extraordinária é que descobriu que uma determinada mulher, a quem reconheceu desde sempre uma beleza inigualável, era de facto feia e desarmoniosa e que foram os seios grandes e o colo de mãe que o encantaram e o cegaram.  Hoje em dia percebe que aquele padrão já não o seduz e que os amigos tinham razão quando lhe diziam que ela não era assim tão linda! Um dos seus passatempos favoritos é brincar com o seu afilhado de dois anos. Observa-o intensamente e brinca com ele, com o olhar. Promove o vínculo e, com isso, cura um pouco as suas velhas feridas. Está também mais sozinho, mas menos só. O trabalho sobre o olhar conduziu-o ao seu próprio coração e fê-lo compreender melhor a natureza e a qualidade dos seus vínculos. Percebeu que alimentou, durante anos, relações funcionais e sem rosto e que a separação faz parte do vínculo. Percebeu também que o seu coração tem feridas demasiado profundas para que algum dia seja capaz de conhecer a verdadeira intimidade, mas que está a aprender a ser mais íntegro e verdadeiro nas suas relações. A grande mudança manifesta-se nas suas fotografias que deixaram de ser idealizadas e passaram a ser mais reais.

REFLEXÕES FINAIS

Quando o olhar se desvia por causa do medo de ver, deixa de poder projetar a realidade, para projetar as velhas crenças e as velhas imagens, originando uma cegueira mental. O mundo das perceções fica afetado porque o rio que corre no interior do corpo é impedido de transbordar, ficando retido algures e aprisionando a verdadeira emoção. E, assim, o olhar reflete apenas as águas estagnadas e turvas impossibilitando de ver adequadamente através delas. Eu olho e não vejo. O outro olha e não me vê. E torna-se impossível o prazer do encontro! Isto faz-me pensar que muitos dos nossos clientes vivem ainda em estado de choque e que só o reviver do choque poderá remexer as águas paradas e romper a barreira. Quando isso acontece, o cliente recupera a consciência do medo e do perigo e resgata o grito que salva. Com um terapeuta experiente e amoroso, pode experimentar o entorno protetor que ajuda a juntar as partes do corpo que em tempos se dissociaram ou se fragmentaram, reduzindo o pânico e metabolizando a emoção. Neste processo, o rio limpa os caminhos do corpo, levando-lhe oxigénio novo, excitando partes que estavam anestesiadas, sem vida. E o olhar recupera a limpidez e o brilho próprios de um rio de águas correntes, sempre renovado.

Também é claro que o olhar poderá, em alguns casos, nunca ficar totalmente límpido porque as experiências aterradoras precoces pertencem a uma idade em que ainda não havia palavras, sendo as memórias apenas corporais. O cliente aprenderá a reconhecer a emoção e a cuidar dela da melhor maneira possível, mas nunca terá a memória exata para poder dar-lhe palavras ou um contexto, ficando a marca da desconfiança básica. Permanecerá sempre um desconhecido dentro de si, embora possa aprender a dialogar com ele. Poderá dar-lhe nomes, atribuir-lhe formas ou cores, poderá convertê-lo num dragão amigável e cúmplice, num sinal protetor de alerta. E, no fim, até poderá sorrir para esse desconhecido sem rosto porque aprendeu sabiamente a sentir a sua presença e a dar-lhe um pouco de luz.

Algures num livro, li algo que me ficou para sempre. “Sofrimento é uma área da nossa existência onde o calor do coração não conseguiu ainda desenvolver-se. Sofrimento é estar à espera de amor”. Daqui retiro que o outro só nos magoa porque, algures, tocou numa ferida que já habitava em nós. E, assim, é um privilégio termo-lo como espelho para que possamos lamber essa ferida até cicatrizar.

Estou cada vez mais convencida de que o trabalho do terapeuta é um trabalho de travessia do medo para alcançar o amor. O medo e o amor estão em extremos opostos. Onde há medo, não pode haver amor e o contrário também é verdade. O terapeuta deverá “limpar o seu “ecran” vezes sem conta, olhando para dentro, à procura do que ainda está cego e morto em si, dando-lhe luz e vida. Com isto, resgatará o brilho e a limpidez do seu olhar e poderá conduzir o cliente, de forma amorosa e lúcida,  pelos caminhos árduos do processo terapêutico.  O terapeuta só poderá ajudar o cliente a enfrentar o medo se conhecer o seu próprio medo e souber aceitar as transferências negativas daquele, com a inteligência do coração e devolvendo a resposta justa que em tempos faltou. Isso é a própria dinâmica do amor.

Termino com um poema simples que fala subtilmente do olhar profundo, do degelo e do amor.

“Dai-me espaço

Espaço amplo onde me deito

A fiar cabelos de crianças

Enlaçadas no meu peito

Procurem olhares de ferro que abri

Água dura derretida

Consciência entendida

Certeza de estar aqui”

Ana Maravilhas

 

*Artigo publicado na revista francófona Le Corps et L’Analyse (Le regard dans l’analyse bioénergétique

publication date 2006  publication description Le Corps et l’Analyse – Volume 7 – Numéro 2 – Automne 2006)