NÃO, MAS SIM. SIM, MAS NÃO

Não mas sim

Perigo.

Gosto sempre de escrever histórias com “fins” harmoniosos e felizes, mas a realidade é que há histórias que não acabam assim e outras, ao invés, são difíceis e não parecem felizes, mas são. São porque conduzem sempre a algum lado, pelo menos para alguns dos personagens. São porque as histórias não chegam propriamente ao fim. Eu é que as apanho num momento significativo e resolvo eternizá-lo temporariamente, para que possamos ver melhor, pensar melhor e, quiçá, escolher o nosso caminho com mais propriedade.

Perigo.

A relação começou por um enorme desejo sexual e foi ficando mais séria. Começou por um belo dia. Tudo se conjugou para um perfeito encontro. Depois veio um fim de semana, e mais fins de semana, e agora todos, depois mais dois dias por semana e assim sucessivamente até fazerem juras de viver juntos e ter filhos.

Ela viu tudo. Viu a “possibilidade de” e também viu o fait divers. Viu o fervilhar da pele em contradição com os jogos mentais de Aquiles que entretanto já se defendia de cair nas malhas do amor maduro. Ainda assim, Afrodite continuou a desfrutar do que a vida lhe oferecia. Ou não fosse ela Afrodite. Que eu saiba, na mitologia, Afrodite não teve nada com Aquiles. Mas não faz mal. A realidade é surpreendente. Todos temos um pouco de Aquiles e de Afrodite, de Hera, de Perséfone e por aí fora.

Ele ia dando sinais de alarme. Pequenas fugas, grandes fugas, descompromissos inesperados, alternados com arrebatamentos de paixão, cumplicidade, crises de liberdade adolescente, desconversas, conflitos, rivalidade, desconsiderações, exigências contraditórias, paixão outra vez, amor… Amor? Acho que não. Aquela mulher deusa também acha que não. Seria mais uma “tentativa de”. Uma “aproximação a”.

Sempre que ele tinha saudades dela, numa das pausas ou distâncias criadas, achava que aquilo não passava de sexo e de uma profunda amizade. Sim, sim. Amor não seria concerteza. A sua mente racional tinha, sempre a postos, o pin para fugir. Todas as vezes que chegava perto de uma enorme, incontrolável, terrivelmente atraente, confortável, acolhedora, amorosa vibração ou de um forte conflito, soavam todos os alarmes. Não, ela não era seguramente o seu tipo de mulher. Era linda. E de facto era. Era sensual. De facto era. Era inteligente e bem sucedida profissionalmente. De facto era. Era paciente e amorosa. De facto era. Era autónoma. De facto era. Era livre, verdadeiramente livre. De facto era. Mas, por ser autónoma, inteligente, amorosa e com critérios de excelência, via as incoerências e reagia às desconsiderações. Mau! Muito mau! Faltava a esta mulher a perfeição. Ela insistia em curar-lhe o calcanhar e Aquiles esperneava porque se sentia preso.

O homem desta história sufoca só de pensar que se pode seriamente vincular a alguém. O amor mais sublime é aquele que ainda não aconteceu. Aquele que há de vir. Aquele que lhe permite, na imaginação, não ser confrontado com qualquer obstáculo, qualquer exigência, apenas um amor incondicional que tudo permite, diga-se, como o de algumas mães que deixam fazer tudo e ao mesmo tempo não dão o que é preciso, que não dão limites, que estão e não estão, prometendo um amor maior e abandonando frequentemente. Ambivalência.

Estamos a falar do vínculo ambivalente. E este jogo de “ai que medo de me entregar porque ela vai seguramente abandonar-me” e, ao mesmo tempo, “vou saltar fora, mas ela no fundo ama-me” conduz a atitudes de fuga à intimidade, alternadas com uma ansiedade e controlo crescentes.

Culpabilidade. É a culpabilidade que faz com que aquela mãe volte sempre ao contacto da mesma maneira. Não é que ela não tenha amor, mas a culpa não lhe permite ir mais longe e saber o que isso é. E o menino, que cresceu neste pânico de perder, nesta falta de consistência, neste vazio de amor, nesta certeza de que mesmo que ele se porte mal e faça birras ela nunca lhe dará limites e nunca o mandará embora, passa a acreditar que o amor será sempre isto: o amor atual, sempre insuficiente, mas com a promessa de que tudo poderá melhorar um dia. O menino nem entra, nem sai. Nem se vincula, nem se separa. No futuro, com as mulheres, fará o mesmo que a mãe lhe fez, até que um dia uma delas lhe dará amor a sério, lhe mostrará o que é compromisso e vínculo seguro e também lhe dará limites rigorosos e implacáveis.

Assim foi a história daquele casal. Ele bem tentou passar de um registo a outro, como se nada fosse, para não sentir a dita ansiedade de separação e o medo da perda, mantendo a distância de segurança chamada “descompromisso”. Ele não lhe chama descompromisso, como é óbvio. Isto diz Afrodite e digo eu que estudo e escrevo sobre estas matérias. Ele chama “salvaguardar uma amizade importante”. Mas ela não aceitou, claro. Ele não teve alternativa senão passar sozinho o deserto da separação. Estou certa de que no fundo da sua alma infantil há uma voz de criança que continua a dizer: “Um dia há de chegar um amor maior, um amor em que tudo flui, em que eu não precisarei de fazer nenhuma adaptação de fundo, nenhuma mudança; haverá uma mulher que seja capaz de se ajustar ao caleidoscópio infinito da minha personalidade, incluindo as mudanças repentinas de humor, os vaipes de “liberdade” e os meus próprios desencantos. Essa mulher será capaz de se metamorfosear a cada instante para acompanhar a minha energia fabulosamente complexa, neste processo contínuo de me conhecer e de me experimentar ser. Há de haver uma mulher que não necessita. Não necessita de nada. Tão sublime que nada será suficiente para a vulnerabilizar. Uma verdadeira deusa. Um dia, terei uma mãe verdadeiramente incondicional, vestida de mulher. Amar-me-á tanto e será tão igual a mim que seremos um só”.

Perigo.

O que este homem não compreende é que essa mulher mãe será sempre o seu espelho e, quando ele estiver frustrado num daqueles momentos de experimentar ser e de se conhecer, ela também estará assim. Eu sou tu e tu és eu. E ele ficará extremamente irritado, achando que aquela coisa desagradável e feia é ela. Ele não. Essa coisa feia e má é ela! Chama-se a isto Simbiose. E a Simbiose conduz infalivelmente os indivíduos à frustração. Informo que a simbiose só é saudável até aos 8 meses de idade. A seguir, se permanecer, cavará o fosso emocional entre os seus atores que lutarão consecutivamente com múltiplas projeções psíquicas. Juntos para sempre, mas nas guerras conhecidas e num certo longing por aquele amor… enquanto alguns optam por se separar e continuar a saga da procura do Graal. Trabalhoso, sem dúvida.

Passou um ano. Afrodite fez o luto. Aquiles reapareceu. Ela permitiu o encontro. À medida que a conversa ia avançando, Afrodite reparou que Aquiles continuava ferido no mesmo calcanhar. Viria ele confessar a falta que ela lhe fez? Viria ele reconhecer que gostaria de poder reatar a relação de amor? Não. Veio dizer que estava absolutamente resolvido, mas com uma coisa estranha a acontecer. O desejo por ela continuava de tal ordem grande, mesmo à distância, que ele não conseguia prosseguir a sua vida com outras pessoas. Que seria isto? Ele não a ama, está absolutamente certo de que a separação foi a melhor decisão que ele poderia ter tomado, mas o desejo por ela tinha vida própria e intrometia-se a cada instante, nos momentos mais inconvenientes. E esta? Afrodite (mais Héstia sábia do que outra coisa) ficou atónita. Sem mostrar, claro. Continuou como se nada fosse, como se, de mãos dadas, o conduzisse pelos meandros da sua própria clivagem.

Clivagem é o termo. Aquiles vive entre os dois pólos, cabeça e sexo. O coração continua fechado e, portanto, sem poder fazer ligações emocionalmente inteligentes. Em nenhum momento entendeu que ele talvez gostasse mesmo dela. Que talvez valesse a pena viver aquele amor e aprimorá-lo herculeamente. Que talvez seja isso a perfeição. Um encontro entre dois seres cheios de particularidades e cumplicidades fortes, em processo contínuo de evolução. Um encontro entre dois seres que, na ausência um do outro, se apercebem da durabilidade dos sentimentos e da presença forte de ambos, que impregna todo o espaço à volta. Em nenhum momento ele percebeu que para se ter o amor perfeito não se pode abandonar o barco e continuar a ser o menino mimado à espera da tal mulher mãe. Em nenhum momento ele percebeu que a perfeição é imperfeita e que é por isso que existimos. Para curar os nossos calcanhares de Aquiles e nos transformarmos em homens e mulheres livres e, ao mesmo tempo, simples e serenos em relação à Vida. Ele infelizmente ainda não percebeu que a infância nunca mais volta e que essa mãe incondicional também não existe dessa maneira. Que ele é homem e é responsável por transcender a sua história e crescer. E que só existem mães que fazem o melhor que sabem e se arriscam a educar. Que umas são mais bem sucedidas do que outras e que todas elas tiveram mãe. Ele não entende que a perfeição é ser-se humano e crescer continuamente, com os olhos postos no horizonte divinamente perfeito da nossa imaginação. Que ser perfeito é ser-se humano e misturar-se paritária e humildemente com todos os seres que erram, sem paternalismo. É ser-se humano, imperfeito e nobre, feio e bonito, forte e vulnerável, com prazer e dor. Sempre em movimento! Imperfeito! Com os olhos postos no horizonte divino da nossa imaginação!

Não interessa o fim da história. Apenas o episódio. Afrodite saiu do jogo da ambivalência e nunca mais regressou a ele. Aquiles terá que viver ainda muitas desilusões e equívocos semelhantes, repetindo, repetindo, repetindo … até um dia … ou… sempre…

Aquiles poderia ter decidido ser o Pedro do Poema de Gratidão que escrevi em tempos. Optou antes por continuar a surfar nas ondas do sim, mas não, não, mas sim. É por estes misteriosos motivos que não podemos deixar de acreditar na transformação do Homem. Está-se na fronteira, na ponte ou em alto mar e, de repente, devagar, escolho uma saída mais plena. Ou, então, escolho viver coerentemente dentro dos limites definidos pela ferida artrítica do meu calcanhar, sem ludibriar os outros. Ambas as saídas são transformadoras.

E para os que ficarem no sim, mas não, não, mas sim, não sei o que poderá acontecer. A história deste Aquiles em concreto continua, o mais certo, longe da minha observação e da de Afrodite. Noutros lugares do mundo, a vida continuará a acontecer-lhe e a oferecer-lhe as suas infinitas oportunidades. Quem sabe?

 

Nota 1: estão salvaguardadas todas as regras de sigilo profissional.

Nota 2: o recurso aos nomes de Aquiles e de Afrodite é para simbolizar apenas o tema da vulnerabilidade do personagem masculino e o tema da sexualidade/sensualidade que aquele atribui à mulher da história.