PAI

Passaram-se quase 16 anos, depois da morte do meu pai. De repente, dei-me conta da falta que ele me faz. Era um homem grande e era o meu pai. Às vezes precisamos de dizer “Olha, aquele é o meu pai”. A mão dele era forte e conseguia, de uma assentada, apanhar-me o cabelo todo. Tenho saudades das viagens longas em África, dos milhares de quilómetros percorridos sem avistar vivalma, dos animais que se cruzavam no nosso caminho, dos rios enormes com jacarés e jangadas. Sempre tive muito medo dos jacarés. Não me esqueço daqueles olhos e bocarras ameaçadores e das histórias que se ouviam. Algumas delas, contou-me ele. Dessas, eu não gostava nem só um bocadinho. Tenho muitas saudades das canções. Ele cantava muito. Eu chorava porque ele imprimia emoção às palavras e gostava de impressionar. Conhecia-me bem. Sei-as todas, de cor e salteado, algumas em Umbundo.

Era um sonhador e um visionário. Desenhava sonhos. Que engraçado! Ele desenhava sonhos e eu danço sonhos.

– Filhos, venham cá!

E lá íamos nós a correr, eu e os manos.

– Estão a ver esta casa? Um dia, vai ser nossa.

E assim aconteceu, muitos anos depois, já nós éramos crescidos, em Portugal.

Este é apenas um exemplo. Há muitos outros, no sótão das minhas recordações.

Aprendi com ele que o sonho comanda a vida e que se morre quando se deixa de acreditar. Foi assim que ele morreu. Foi deixando de acreditar.

Deixou-me, como herança, a ousadia e o pensamento divergente, ainda que, muitas vezes, de forma caótica. É mesmo verdade que é do caos que vem a criatividade.

Era o homem dos sete instrumentos. Pintava, tocava banjo e piano (vim eu a saber há bem pouco tempo), cantava, desenhava, desmontava carros, arranjava-os, montava-os novamente e vendia-os, era empreendedor, homem de negócios, poeta e Dom Quixote. Sim, tinha um quê bem grande de Dom Quixote. Tanta coisa num pai só! Também tinha coisas pouco simpáticas, como muitos pais. Essas já foram todas choradas e mais que choradas.

Hoje, ao olhar para uma fotografia dele, tive saudades do deslumbramento que me causava e saudades de tudo o que não me deu, do que faltou, do que poderia ter sido, que, curiosamente, ele deixou, em esboço, nos seus desenhos. Estão agora entregues a mim, à minha capacidade de lhes dar forma. Fiquei com os seus pincéis e com uma cabeça cheia de histórias para inventar, com alguns enigmas para resolver e com muitos desafios pela frente. Sim, foi um pai que me deixou muitos desafios e é por isso que um dia me disseram que eu ia viver muitos anos. Que por ter muito trabalho pela frente, nasci com um bónus de vitalidade, para poder dar continuidade aos sonhos do meu visionário pai, desmontar muitos deles e transformá-los noutros, bem diferentes, mais acertados.

Hoje olho para trás e vejo-me aos saltos, a rebelar-me contra aquilo que achava injusto, a reclamar liberdade, e ele a disfarçar um sorriso, achando-me graça. O sorriso, esse, só reparei bem mais tarde…

Era assim a vida com o meu pai. Uma torrente de emoções.

Era um alquimista.

Tenho curiosidade em saber o que é que ele me diria quando se apercebesse que me tornei numa Dj, quando seria suposto, pelo status quo, ser uma presidente qualquer de uma qualquer associação. Estou convencida de que não se surpreenderia…pois isso faz parte da herança que ele me deixou. Nunca mais me hei-de esquecer da aparelhagem Pioneer espetacular que ele tinha no carro. As viagens eram feitas em silêncio, a ouvir música da mais refinada qualidade, com som de alta fidelidade. Gravei-lhe muitas cassetes ao longo da vida. Toquei muita guitarra e cantámos juntos. Já para não falar da discoteca do Hotel dele! Grande música, anos 50, 60,70 e 80, em vinil, claro, e muito jazz, como não podia deixar de ser.

Tenho saudades do meu pai. Não foi perfeito, longe disso. Mas foi-se tornando perfeito, dentro de mim, com as pinceladas que lhe fui dando ao longo dos anos. Neste preciso momento, está a suportar-me as costas e a sussurrar-me ao ouvido para nunca, mas nunca deixar de acreditar nos meus sonhos porque os sonhos têm vida própria e nunca morrem.

Tenho saudades do meu pai.

7 de dezembro, 2019