CORAÇÃO DE ASAS COM PERNAS LONGAS

CAPÍTULO 1

Esta é a história de uma fada, de cabelo encaracolado e cheiro a floresta, muito diferente das fadas vulgares. Em vez de asas, tinha o dom de imitar a linguagem dos animais e, até hoje, ninguém sabe ao certo se, de facto, seria uma fada, ou simplesmente uma menina dotada de uma enorme capacidade de sonhar. As pessoas precisam muito de dar nome às coisas, para se sentirem seguras, e é por isso que não perderam tempo a classificá-la. Enquanto a sua verdadeira identidade não for compreendida, consideremos que aquele ser, de vestes assimétricas, seria uma fada.

Nascera logo pela manhã, numa terra abundante, no seio de uma família numerosa. Uma família particularmente irrequieta e cheia de sonhos. Não raro, era o fumo colorido que saía pela chaminé da sua casa, por causa das inúmeras fogueiras que faziam diariamente, a propósito de todo o tipo de assuntos. Quando se zangavam, a fogueira servia para assustar e, quando se divertiam, as fogueiras eram uma espécie de raios luminosos que circundavam as suas cabeças, em loops de imaginação. O pai era quem dirigia as maiores ousadias. Já a mãe, tinha o cuidado de segurar os pequenitos para que não tivessem medo. Mesmo assim, tinham muito medo. A miúda mais nova vivia tão assustada, que resolveu aprender a cantar e a dançar no escuro, iluminada pelas estrelas, para afastar os maus pensamentos. O poder das suas danças era enorme! Conseguia, em cada rodopio no espaço, transformar-se em quase todas as espécies de animais que habitavam a floresta circundante. Foi assim que ela aprendeu a comunicar com eles. Estes, de orelhas arregaladas, seduzidos pelo som cantante da fada, deslizavam, sem demora, pela folhagem densa, aparecendo, de sopetão, gulosos de curiosidade.

– Não pares! – gritava o pavão, sempre que a moça se calava só para descansar um bocadinho.

Ao mesmo tempo, os patos bravos agitavam-se no lago, os lobos uivavam e os coelhos, esses, aproximavam-se de mansinho, em jeito de súplica:

– Continua, por favor!

E assim se passavam horas.

Dentro de si, a fada sabia que, para além daquele lugar conhecido, havia mais mundo e seres maravilhosos capazes de lhe mostrar outras realidades. Se o seu canto conseguia inebriar os seus amigos animais, as suas danças tinham o poder mágico de a fazer desaparecer…

– Que fantástico! – dizia para si mesma, maravilhada com o que acabara de descobrir. Esfumando-se no espaço, conseguia reunir toda aquela energia e plasmar qualquer animal à sua escolha, assumindo as suas habilidades e instintos de sobrevivência. Os seus amigos animais não dariam conta e, misturada no meio deles, seria conduzida pela imensidão das paisagens, até encontrar o que a sua sabedoria profunda lhe segredava. Algures, longe dali, estaria algo de muito especial à sua espera. A fada era dotada de uma enorme fé. Ninguém lhe tirava da cabeça que a vida podia ser extraordinária!

Muitos dos seus dias eram passados assim, dançando e cantando para os animais da floresta, e usando poderes mágicos para expandir o seu horizonte. De curiosidade em curiosidade, de ritmo em ritmo, foi fazendo da sua vida uma busca incessante daquele lugar, onde só houvesse fogueiras criativas que não causassem medo nem instabilidade.

Cabisbaixos, pela falta do canto e das danças da sua amiga, os animais acabariam certamente por retornar ao interior da floresta, e ela segui-los-ia sem que eles dessem por isso.

CAPÍTULO 2

Os roedores eram seres adoráveis e muito vivos. Eram hábeis na arte de ziguezaguear pelo espaço, arrastando consigo olhares curiosos que desejavam penetrar na floresta labiríntica.

Numa certa tarde de verão, surgiu um coelho, de cor invulgar, no meio da bicharada que se juntava à volta de um riacho muito fresco. O novo visitante fazia ziguezagues estranhos, lembrando danças. Os outros coelhos, pavões e companhia pressentiam algo familiar, mas longe de imaginarem quem seria afinal aquele coelho com semi-tons difíceis de definir. O mais estranho de tudo era, porém, a grande assimetria que exibia na pequena cauda.

– Quem és tu?

– Ora, que disparate, quem sou eu! Sou um coelho como tu.

– Nunca te vi aqui…és um pouco diferente. – insistiu o coelho cinzento, intrigado.

– Sabes bem que nos reproduzimos à velocidade do vento … é mais do que natural não darmos conta uns dos outros…

– Não, não. És mesmo muito diferente!

– E qual é o problema de ser diferente? É proibido, por acaso? Vá! Chega de conversa e vamos passear. Apetece-me imenso atravessar a floresta, antes que anoiteça. Vamos?

– Uhm! Vou chamar os outros. É melhor irmos todos. Há sempre perigos pelo caminho. Quantos mais olhos, melhor. Nunca se sabe quando há um predador à espreita.

– Como assim, um predador?

– Vê-se mesmo que és novato aqui. Então não sabes que o mundo lá fora não é um mar de rosas? Encontra-se de tudo. Animais e pessoas generosos, e outros, diabólicos. Os piores de todos são os que vêm disfarçados com pele de cordeiro. É preciso ter radar, faro e velocidade.

A fada ficou um pouco dececionada com a perspetiva de vir a encontrar obstáculos e perigos. Estava cansada daquele lugar desassossegado em que vivia que, ora tão depressa a fazia exultar de alegria como, de repente, a consumia de instabilidade. Viver na corda bamba, onde os humores familiares se assemelhavam a labaredas de um fogo incontrolável, era muito cansativo. No seu coração, residia o sonho de encontros felizes e lugares seguros, onde se pudesse ser livre e, ao mesmo tempo, estar acompanhada por presenças doces e familiares.

Mas os seus amiguinhos desconheciam os seus poderes! Ela saberia escutar as intenções mais profundas de qualquer ser, falar a sua linguagem e conquistar os seus corações. Se aparecesse um lobo, um rodopio no ar seria suficiente para se transformar num lobo também, com olhos penetrantes e aquela capacidade de arremessar as patas contra o chão, de forma segura, para se lançar num voo. Em vez de adversários, encontraria aliados. Disso, a fada estava quase completamente certa.

Quase, pensava bem. Lá no fundo, havia sempre a ameaça de um perigo.

Sem demora, os coelhos avançaram floresta adentro, colhendo experiências pelo caminho e alimentos da mais variada espécie. Ao longe, escutavam-se vozes e música. Música era a paixão de todos eles, coelhos, pavões, lobos e fadas. Mais se agitaram, acelerando os passos, entrecruzando-se caoticamente para ver quem chegava primeiro. O coelho de cor indefinida era quem chegava mais depressa aos sítios porque o seu coração tinha asas com pernas longas.

Junto à encosta de uma montanha fabulosa, erguia-se um homem de chapéu, exibindo vestes brancas, esvoaçantes. A imagem era majestosa e deslumbrante. Ao seu lado, havia músicos. Mais de 20. Mulheres e homens dançavam freneticamente, soltando gritos como o guinchar das águias. Havia abundância, risos, comida e vinho. O homem emanava um magnetismo capaz de hipnotizar. Dos seus gestos, brotavam promessas de magia e amor profundo. Tudo à sua volta parecia ganhar tamanho e luz. Só aqueles gritos, como o guinchar das águias, destoava. Ainda assim, a fada, disfarçada de coelho, não resistiu a ver apenas o que lhe interessava. Deixou-se encandear pela luz, rodopiando magicamente no espaço. Num ápice, voltou ao seu corpo de mulher já feita, deixando para trás a pele de coelho e todos os animais. Estes estavam tão ofuscados pela música e pela mesa farta, que nem deram pela falta do coelho peculiar. O cavalheiro deslumbrante, hábil em manobras de charme, nunca mais tirou os olhos da jovem mulher.

Aqui começou uma história que viria a repetir fogueiras perigosas, fascinantes e instáveis que, em vez de expandir, aprisionaram a fada peculiar numa loucura de pele sedosa, enganadora de tão escorregadia. A cegueira pela luz é pior do que viver na sombra, e a fada quase perdera os seus poderes.

Quase. A fé inabalável com que nascera rasgou a mesma pele, fazendo sangrar o orgulho de uma leoa. Nesse dia, a dança foi tão intensa, que a mulher dera corpo ao felino majestoso de garras e dentes afiados, esfomeado de liberdade.

E, assim, partiu ela, dentro de uma corrida veloz e sensual.

CAPÍTULO 3

A paisagem era agora mais árida, com uma árvore aqui e ali. Os animais eram de grande porte e os gatos grandes, onde ela se incluía, rugiam para abrir passagem. A leoa exibia uma cauda fabulosamente assimétrica, de duas cores, ganhando ainda mais o respeito dos animais daquele lugar.

– Quem és tu?

– Ora, quem sou eu!! Sou uma leoa, não vês?

– Pareces, mas…nunca vimos nada assim. Como gatos que somos, somos vigilantes e nada nos escapa. Onde arranjaste tu essa cauda?

– Incomoda-vos, a minha cauda?

– Não é que nos incomode, mas somos os reis deste lugar e exigimos saber quem tu és.

– Sou uma leoa peculiar. Já ouviram falar de animais peculiares? Há sempre um em cada família. Normalmente, tendem a ficar mais solitários, entregues à sua diferença. – explicou a fada leoa.

– É a primeira vez que conhecemos uma leoa peculiar, mas faz sentido o que tu dizes. Há sempre alguém que não se encaixa e que percorre mundo à procura do seu verdadeiro lugar. – aquiesceu o leão mais velho da alcateia.

– Importam-se que fique convosco? Gostava que me levassem a conhecer as lonjuras deste lugar. Que tal irmos até ao limite, onde a terra se encontra com o rio? – sugeriu a leoa, mudando rapidamente para o assunto que lhe interessava.

Está bem! – concordou o leão. – Vamos levar-te às margens de um rio esplendoroso. É impossível ficar indiferente à sua grandiosidade!

Nessa noite, dormiram empoleirados nos galhos de uma grande árvore, iluminada pelo luar ponteado de estrelas. Uma suave brisa rufava nas folhas, enquanto, ao longe, se ouvia o crocitar persistente dos mochos.

A alvorada chegou com a debandada dos felinos. Linda imagem, aquela! O tom trigueiro das leoas contra o azul índigo do céu, raiado a vermelho, ficou eternamente gravado na memória da fada peculiar, como selo do esplendor máximo da Natureza. Velozes, rasgaram o horizonte, desenhando ondas sinuosas e insinuantes de beleza suprema.

Os ziguezagues alegres e dóceis dos coelhos deram lugar a linhas sensuais, sem princípio nem fim, curvas magnéticas de poder certeiro. Ninguém ficava indiferente àquele cenário espetacular de grandiosidade e força. Os mais incautos, de passo lento e distraído, viam-se em apuros quando aqueles seres majestosos avançavam exuberantemente, sem se desviar do seu caminho. Esta leoa era a voz assertiva da fada, que começava agora a alojar-se nos seus ossos.

Percorreram paisagens infinitas, dias e noites a fio, até chegarem às margens de um enorme rio, bordado a capim dourado. O exotismo do lugar era de cortar a respiração, mas o que mais chamara a atenção da leoa peculiar fora o jovem esguio e ágil que manejava, com destreza, uma jangada enorme e pesada. Havia ali muita vitalidade e um quê de espírito selvagem fascinante, envolvendo a fada em sonhos de aventura e liberdade.

Num contorcionismo felino, a leoa projetou um corpo de mulher, caindo graciosamente junto aos pés do jovem que parecia admirar a sua aparição magistral, refletida na água do rio. Começara aqui uma amizade cúmplice. A fada pensou ter encontrado o seu lugar e a sua tribo, comandada por um jovem aventureiro, livre e conhecedor do mundo.

A desilusão não tardara a aparecer. Sempre que era suposto saírem para uma aventura, o jovem descartava a sua amiga, levando consigo fieis admiradores dos seus talentos. A fada ficava desconcertada, apercebendo-se rapidamente do logro daquele encontro. Em vez de partilha de aventuras, cada um ia para seu lado, cavando-se um enorme fosso no pilar da confiança.

Antes da partida do seu amigo para uma grande viagem à volta do mundo, a fada surpreendeu-o a falar com a sua própria imagem, espelhada no rio. O jovem fazia as perguntas e dava as respostas, decididamente enamorado do seu próprio encanto.

Estava compreendido o enigma e confirmada, mais uma vez, a precipitação da fada leoa, com coração de coelho, sonhador e ingénuo. No dia da sua chegada às margens do rio, o jovem ágil não a contemplava a ela, mas sim a ele próprio, na transparência das águas.

Sem mais delongas, uniu a sua voz ao piar dos mochos que se preparavam para iniciar uma longa viagem pela noite dentro. Iniciou a dança de braços mais poderosa que alguma vez fizera, levantando voo contra o cinzento do céu.

CAPÍTULO 4

Os mochos são dotados de excelente visão, audição apurada e voo silencioso, fazendo deles especialistas em manobras surpresa. São os companheiros mais seguros e calmos que há, para atravessar longas extensões. Algumas espécies conseguem aumentar e diminuir de tamanho, para se defenderem de outros animais, ou para se camuflarem como um galho, dependendo da situação. A fada não hesitou em entregar-se ao silêncio desta viagem acompanhada, plena de sofisticação. Finalmente, encontrara companheiros capazes, como ela, de fluir no espaço e de se transformar a cada instante.

Estes seres são conhecidos pela sua sabedoria e, como tal, abordaram a fada, diretamente, sem hesitações.

– Bem-vinda ao bando. Nós sabemos quem tu és.

– Claro que sabem…. sou uma de vocês, então…

– Podemos admitir que és uma de nós, sim, apenas na medida em que consegues ser uma de nós.

– Que querem dizer com isso? – titubeou a fada, agora com uma assimetria flagrante nos olhos.

– A tua cauda assimétrica de leoa e a aterragem espetacular que fizeste junto aos pés do jovem, à beira do grande rio, chamou a nossa atenção. Apreciamos essa tua qualidade e, se bem te lembras, quando dormias nos galhos da árvore, ouvia-se ao longe o nosso crocitar.

– Sim, agora que o dizem, lembro-me bem…

– Esperamos, sinceramente, que esta seja a tua última viagem, na pele de um animal. Em algum momento da tua jornada haverias de seguir a nossa voz.

A fada mocho perdera os argumentos e as perguntas. Estava perante animais soberbos, seguros da sua sageza.

– Apressemo-nos! Temos uma viagem longa pela frente. Vamos levar-te a um sítio muito fresco, diferente de todos aqueles por que passaste. Um lugar, cuja aparência desafiará tudo aquilo que conheces e aquele que sempre foi o cenário dos teus sonhos.

Ouvido o decreto do Mocho-Real, a fada peculiar desenhou dois loops no ar, em consentimento do que fora dito, levando, nos seus olhos enormes, uma fé inabalável.

Fora a viagem mais longa que fizera até então!

A travessia das montanhas era muito dura. O ar denso e o gelo nos cumes fazia doer a pele e os ossos. Seria necessária uma grande dose de persistência e uma forte capacidade de abdicar do conforto da terra quente. Nos percursos mais difíceis, a fada quase desistira da grande viagem. Tinha saudades do rugido da leoa, da sua força exuberante, e da distância de segurança que soubera conquistar. Saudades também do azul índigo, raiado a vermelho. A magnificência do universo era a maior compensação para a solidão. Uma espécie de espírito imbuído na existência humana, uma companhia silenciosa e reconfortante.

Mas havia agora a voz do mocho, piar sábio e seguro.

– Não se pode desistir quando se chega a este ponto!

Visitaram muitos lugares. Em alguns deles, a fada demorou o seu olhar e fez de conta que já tinha chegado ao seu destino. Apetecera-lhe acreditar que aqueles sítios e aquelas pessoas poderiam ser o seu país. Em todos esses lugares, voltava ao seu corpo de mulher e a todas as vulnerabilidades.

Era cansativo mudar de pele. Porém, percebia que as transformações iam sendo cada vez menos dolorosas e que, dentro de si, começava a reinar toda a sabedoria do reino animal, incluindo o humano. Bastava, simplesmente, manter-se no ritmo e no centro do corpo, ainda que cada despedida fosse sempre um pouco triste.

Numa dessas despedidas, a fada mocho partira bem cedo, na companhia incondicional dos seus amigos. Ao primeiro sol da manhã, juntara-se o grasnar dos corvos, anunciando o avançar do dia que se enfeitava, então, de uma luz muito especial. A visão dos campos, a partir do céu, era lindíssima. O matizado das cores espalhava-se a uma velocidade surpreendente, em todas as direções, impregnando o ar de um perfume doce a primavera.

Passaram-se dias. Percorreram milhares de quilómetros, sem avistar vivalma. Um verdadeiro mergulho no coração da natureza!

Nisto, a fada avistou, ao longe, uma aldeia, erigida sobre uma serra voltada para o mar. Era o sítio ideal para uma paragem. O céu estava um pouco frio e apetecia-lhe descansar em terra firme. Desceram suavemente e poisaram num muro branco, debruçado sobre um vale cheio de ervas rasteiras e flores silvestres. Ao longe, ouvia-se o barulho do mar e, um pouco mais perto, o eco de chocalhos. Que seria aquilo?

Movida pela curiosidade, planou encosta abaixo, sendo surpreendida por um rebanho de ovelhas a pastar. Mais atrás, sentado num muro de pedra, estava um pastor sossegado a contemplar o seu rebanho. Discretamente, a fada mocho, de olhos assimétricos, fez uma espiral graciosa, rebolando pelo pasto abaixo, com vestes leves e cabelo despenteado. Não tardou a ouvir-se o balir das ovelhas agitadas e os seus chocalhos a soar desordenadamente. O pastor logo se aproximou para ver o que se passava.

– Bom dia! Não se assuste que elas não fazem mal. São os seres mais dóceis que existem e nunca estão quietas. Basta ouvirem alguém a bulir, ou uma abelha a esvoaçar, que começam logo aos saltos. A menina é daqui?

– Não, não. Acabei de chegar de uma longa viagem. Ouvi uns chocalhos, vi flores silvestres e não resisti a vir espreitar.

– Olhe que isto aqui é uma agitação. Aparentemente é tudo muito calmo, mas o dia é muito preenchido. Só o tempo que demora a dar banho às ovelhas, fazer-lhes as camas, ordenhá-las…Pfff! Não imagina! Depois é preciso estar sempre a orientá-las, levá-las de um lado para o outro, ir buscar uma que resolve ir brincar para o meio da rua… ah pois, é que elas brincam! Há umas que parecem cães e fartam-se de saltar. O momento mais pacato do dia é este, o da pastagem. Estava mesmo agora a descansar um bocadinho, quando ouvi as minhas ovelhas a balir desalmadamente…

– Desculpe tê-lo tirado do seu descanso…vou já embora. Não quero incomodar.

– Essa agora! Não peça desculpa! Dar dois dedos de conversa é sempre bom.

– Pois imagino. Deve ser uma vida muito solitária, a de um pastor…

– Solitária?

– Não é? – questionou a moça, meio surpreendida.

Nem pensar nisso. – retorquiu o pastor, deixando sair uma gargalhada. – As pessoas que vêm da cidade têm sempre essa opinião, e poucas acreditam no que eu lhes digo, que aqui acontecem coisas sublimes, todos os dias. Dizem que sim com a cabeça, mas logo dão meia volta e regressam às suas vidas citadinas. Também está bem assim. Cada um deve viver como gosta. Também eu gosto da cidade, às vezes.

A fada peculiar estava a gostar tanto desta conversa, que se esqueceu dos seus amigos. Onde andariam eles? Ela aprendera a confiar na sabedoria destes animais, observadores e discretos. Se necessitasse, viriam buscá-la, sem hesitações.

– Gosto muito de estar aqui, mas acredito que, ao fim de algum tempo, sentiria saudades de ouvir música e do calor tórrido. – arriscou a fada.

– Música é o que não falta aqui e, quanto ao calor, espere pelo verão e vai ver!

– Música? Vocês aqui também tocam, cantam e dançam?

– Como é que se chama? – perguntou o pastor.

– Maria.

– Venha cá, Maria. Sente-se aqui e escute.

Fizeram silêncio absoluto durante mais de uma hora. A fada não queria acreditar na miríade de sons diferentes que aquele campo oferecia. Como é que ela não tinha dado por isso ao longo de tantas viagens pelo mundo? Que os sons da natureza eram música, ritmo e obedeciam a uma lei universal rigorosa? O barulho do mar, lá ao fundo, enchia o espaço que dava a pauta onde se inscreviam todos os outros sons: a percussão dos chocalhos, o balir das ovelhas, o sibilar de gatos em luta pelo seu espaço, o rufar das folhas ao vento, as vozes das pessoas ao longe, o chilrear desenfreado dos pássaros…

O pastor reuniu as suas ovelhas e foi mostrar as redondezas à moça que começara, agora, a reproduzir alguns sons, em contratempo. Desceram por um atalho ladeado de árvores frondosas, repletas de frutos, que ia dar a um anfiteatro de cascatas. O exuberante som das quedas de água fazia eco, juntamente com o grasnar dos corvos e as vozes de visitantes que se refrescavam nas lagoas.

Pararam, momentaneamente, numa ponte que fazia a travessia para um lugar mais despido, cheio de pedras. Pedras antigas, enormes, que davam perfeitamente para uma pessoa se estender a apanhar sol ou desfrutar da brisa fresca. Despediram-se das fragas e avançaram para uma dessas pedras, onde ficaram a contemplar as ovelhas irrequietas, e a partilhar histórias.

Havia muito tempo que não sentia tanta paz!

A fada tinha escalado montanhas, atravessado desertos, florestas e rios. Não era fada. Era, simplesmente, uma mulher de fé inabalável, assumida nas suas assimetrias, confiante na força e na imprevisibilidade do destino. Deslumbrara-se mil e uma vezes por pessoas e lugares. Dançara muito para sincronizar com o ritmo de tudo e de todos, acabando sempre insatisfeita. Faltava-lhe algo mais simples e mais profundo. Uma verdade nascida do silêncio e da observação atenta.

Atrás da sua aparência simples, o pastor guardava uma vida repleta de experiências únicas, muitos sucessos e perdas dolorosas. Era um homem de olhar profundo e discreto. Guardava tesouros e palavras, apenas para quem soubesse adivinhá-los. Tinha um grande sonho e não desistia dele. A música fazia parte desse sonho. Fazer pessoas felizes, também. O campo e as ovelhas eram o seu refúgio de paz e tranquilidade. Talvez, um lugar de onde pudesse escutar mais profundamente o seu coração.

Fez-se silêncio quase absoluto.

Tudo parecia entrar em harmonia, respeitando algo muito importante que pudesse acontecer. Talvez fosse a energia daquele sítio, afastado do farfalhar das árvores e do marulhar das ondas, que incitasse ao serenar de todos os ruídos. Só aqui e além, um leve toque de um chocalho preguiçoso, ou o respirar mais fundo de um dos dois.

Não eram necessárias palavras. Somente infinito, onde os sons se entrelaçavam com sentido, compondo sinfonias. Um encontro simples, uma afinidade intrínseca, um cruzamento, no espaço, de dois olhares aguçados, na mesma direção.

Muitas horas se passaram, entretanto.

Sob o pôr-do-sol, brilhavam os dois rostos, agora repousados um no outro. Fazia frio e as suas mãos buscaram unir-se, num calor tão grande, como o sol nascido na pele de amantes felizes.

No regresso a casa, avistaram um bando de mochos poisados no cimo da ermida, resplandecendo contra o azul índigo do céu. Nisto, abriram as asas e levantaram voo, silenciosamente.

A fada, que não era fada, sorriu, agradecendo todo aquele amor nascido da experiência e da sabedoria.

FIM

2 dez, 2019