PÉ DE ORELHA OU INTIMIDADE

 

Observo muito, todos os dias. Tenho um impulso muito grande para ajudar, que fui refreando ao longo dos anos. Hoje, limito-me a ficar atenta, de braços abertos, pronta a agir, se alguém estender a mão. É contraproducente anteciparmo-nos às pessoas, a menos que estejam à beira do precipício. Aí, sou veloz como a chita. É muito delicado interferir no processo delas. Cada uma tem o seu ritmo e o seu limiar de perceção. Um toque mal dado pode levar alguém a fechar-se ainda mais. Por isso, espero por sinais claros.

Isto tudo, a propósito do que tenho vindo a observar em algumas relações de amizade e de casamento.

Muitas pessoas não conseguem estar sozinhas porque o vazio faz vir à tona histórias passadas mal resolvidas, carências e memórias difíceis. Observo, frequentemente, que essa busca incessante de companhia é inversamente proporcional à intimidade construída. Pois é. Quem não sabe estar consigo mesmo, não sabe também estar em relação, porque estar em intimidade com alguém é estar em contacto com emoções, necessidades e desejos, nossos e dos outros.

Como é que isto acontece? Eu explico. Para algumas pessoas, a carência é um buraco que precisa, a todo o custo, de ser tapado. Basta-lhes ter companhia, uma troca de presença física e uma orelha para acolher as histórias diárias, desde que os deixem em paz, no seu isolamento emocional. Já bastaram o excesso de controlo da mãe ou do pai, e as primeiras desqualificações e rejeições. É claro que nada disto é consciente. O problema reside no facto de inúmeras pessoas desconhecerem os seus padrões de fuga ao contacto mais profundo. Essas defesas aparecem silenciosamente, fazendo repetir-se a história, conduzindo novamente a desilusões amorosas e solidão. Portanto, a carência retroalimenta-se a si própria: conduz à busca desesperada de companhia, mas, para não sofrer novamente os mesmos dramas, a pessoa resguarda-se emocionalmente da outra, criando isolamento afetivo. Há muita gente a viver assim, em família. Falam de tudo, mas ao lado do que é preciso, só para não serem apanhados olhos nos olhos. Para algumas destas pessoas, é suficiente a presença de uma orelha disponível.

Vou dar o exemplo da Lídia. Alienada dos seus próprios sentimentos de abandono, projeta tudo isso nos outros, buscando resgatá-los, quando é ela que tem fortes dependências afetivas. É uma espécie de boa samaritana, ajudando este e aquele amigo, este e aquele namorado, este e aquele desconhecido. Só não se resgata a si mesma. Dá, dá, dá, e não se põe a jeito para receber, gerando desequilíbrios em todas as relações. O cansaço instala-se, e é de tal ordem, que resolve o assunto fechando o coração dentro de uma armadura. Depois do último divórcio, devotou a sua vida a superproteger as filhas, encurralando-as numa dependência doentia.

Nestes casos, ao fim de muitas desilusões, pode acontecer uma de duas coisas: desenvolver-se comportamentos aditivos, para não sentir a carência (sexo sem compromisso emocional, trabalho em excesso, viver para os outros, drogas, etc.); ou fazer uma introspeção séria (terapia, por exemplo) para ir à raiz do problema, abrir o coração e recuperar o amor próprio. Voltando à Lídia, era preciso que ela fosse ao fundo do seu abandono, ao seu corpo de dor, e resgatar-se. Só assim, aprendendo a olhar para as suas necessidades profundas, poderia libertar-se do papel de salvadora e construir uma relação nutritiva com alguém.

É um desperdício transformar as relações em palcos tão pobres de partilha! Observo, com alguma preocupação, que algumas pessoas controlam os relacionamentos através do dar, garantindo assim a presença do outro. Outras, pela vitimização manipuladora. Outras ainda, pela atitude de agradar, ficando à mercê da vontade de alguém. No entanto, ao jantar, os olhos não se cruzam, os assuntos não são íntimos, e o telemóvel ganha destaque. Não há encontro.

Nem de propósito, dobrava eu a esquina da minha casa, quando uma vizinha, moça com pouco mais de 30 anos, me intercetou, muita aflita:

– Sei que a vizinha é psicóloga…

– Sim… – balbuciei, surpreendida.

– Preciso muito de ajuda… é por causa do meu namorado – e desatou a chorar abraçando-se a mim.

Alguns dias depois da nossa conversa, tive curiosidade em saber como é que ela estava.

– Ele voltou… – disse ela, com um sorriso de orelha a orelha.

– Chegou a telefonar à minha colega? – perguntei.

– Não. Já não é preciso.

– Deixe-me dizer-lhe uma coisa. – tentei eu, mais uma vez. – Se não resolve a sua questão de fundo, ela bater-lhe-á à porta, novamente.

O resto, não é necessário contar. O caso ilustra bem o texto que acabei de escrever.

Tanto é uma escolha livre, fugir de si mesmo, perpetuando a vítima, como o é, arregaçar as mangas e trabalhar corajosamente sobre os calcanhares de Aquiles. Esta última opção pode revolucionar a nossa vida, fazer-nos sair da mera necessidade de companhia e escolher criteriosamente a pessoa que queremos ao nosso lado, entrando no domínio das relações maduras, fontes de amor e crescimento mútuo.

21 dez, 2019