SE O ARREPENDIMENTO MATASSE
“A angústia de Matilde não passara com o tempo.
– Não me conformo… o que fiz eu? – chorava Matilde, inconsolável.
– Não confundas a realidade, Matilde! – dizia a mãe, já mais firme do que terna –Dá tempo ao tempo. Os temas importantes da vida, quando inacabados, voltam sempre à carga, para serem fechados ou abertos. Ou, então, encurta o tempo e dá um passo. Sai desse circuito fechado pouco saudável. – continuava a mãe, num tom elevado.
Matilde arregalou os olhos perante a lucidez da mãe e a sua própria inquietação.
– Por muito certo que seja um assunto, por muito justas que sejam as palavras, elas devem ser comunicadas presencialmente, olhos nos olhos. Entende, mãe? – insistia – É isso que me mata!
Matilde tinha ousado esclarecer um assunto importante com o seu namorado, por telefone, interrompendo-se a comunicação por algum tempo. Tinham-se passado quase 3 meses e a falta de olhar e de mãos daquele momento convertera-se numa espera dolorosa.
Matilde era uma mulher exigente consigo mesma. Por trás das suas atitudes assertivas, havia uma pessoa vulnerável e preocupada com o sofrimento dos outros. Passou quase três meses a morrer de arrependimento, apesar de segura das suas nobres intenções. Apenas queria dar espaço a que um certo ciclo se encerrasse, protegendo com unhas e dentes a integridade da nova relação. Era uma mulher leal e profundamente idealista, e o sofrimento dos últimos tempos ensinara-lhe que “o tudo ou nada da sua vida” tinha que morrer e ser transformado em emoções mais brandas e realistas.
Munida de coragem, decidiu quebrar o silêncio, precipitando um encontro. Que seria dela, sem aquela mãe lúcida e esclarecida!?
Não sabia o que iria acontecer, mas sabia que, pondo palavra nos silêncios, um rumo mais tranquilo seria dado à sua vida.” (excerto de um pequeno conto)
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As histórias de vida são joias que gosto de partilhar, pelas lições que encerram. Muita gente se revê nos contos que escrevo. Nem eu às vezes sei a quantas dezenas de pessoas me dirijo, sem querer.
Este pedaço de conto remete-me para as armadilhas dos tempos modernos, onde cada vez mais nos escondemos atrás de uma realidade virtual, por medo de exposição a emoções intensas. Os assuntos importantes precisam do calor presencial e de feedback imediato. O isolamento emocional pode conduzir as pessoas à depressão.
Remete-me também para o perigo de algumas palavras, quando proferidas fora de uma situação de contacto securizante. Em alguns casos, os interlocutores podem ficar entregues ao abandono, a pensamentos destrutivos e a interpretações perigosamente subjetivas daquilo que foi dito.
Remete-me para o significado do “tudo ou nada”. Entendo a preocupação de Matilde.
É possível que “o tudo ou nada” seja injusto para todos nós, porque somos humanos, inacabados, vulneráveis, com necessidade frequente de voltar atrás para fazer melhor. É assim a vida. Um processo em espiral, com retornos à sombra, para voltar à luz com mais força. O tudo está cheio de imperfeições e o nada tem sempre uma pequena vida a despontar.
A verdade é incompleta, está sempre em transformação. Aquilo que sempre foi verdadeiro para Matilde, parece converter-se agora, perante a experiência de dor, em algo mais redondo, sem arestas. Sem perder a convicção de que é preciso estar-se inteiro nas escolhas, aprendeu um pouco mais sobre a sua vulnerabilidade e que a humildade é a pedra de toque do crescimento.
Há uma Matilde dentro de muitos de nós. A partir desta história verdadeira, chamo a atenção para quatro asserções de extrema importância:
– É urgente sair do isolamento e pedir ajuda.
– É preciso sair da anestesia afetiva que nos impede de viver com inteireza as nossas relações.
– Antes de assumir uma posição, é recomendável meditar um pouco sobre a nossa capacidade de a sustentar.
– Quando se fala de amor, é imperativo voltar às conversas com voz, olhar e toque.
Espero que Matilde regresse ao equilíbrio, muito em breve.
24 jan, 20