O OLHAR NA ANÁLISE BIOENERGÉTICA *

O QUE O OLHAR PODE ALCANÇAR

Viajava com uma amiga, à procura de encontrar paisagens diferentes e algo de novo no horizonte.

De tempos a tempos, é preciso desfocar o olhar das rotinas e das emoções recorrentes que tardam em ser metabolizadas, dando origem a outras.

O movimento ajuda-me a sentir um pouco mais, a sair do impasse. Viajar, deixando para trás responsabilidades, permite-me estar a sós com o meu coração e olhar para ele, sem pressa. Um olhar de um estranho, numa cidade desconhecida, pode despoletar em mim um sonho, uma tristeza, uma alegria, uma grande inspiração criativa. Ou fazer-me recordar um medo e perceber um sem número de defesas que não me deixam ousar e ir mais além.

Por vezes, basta um movimento.

Outras vezes, basta uma palavra no momento certo, de olhos nos olhos. E o coração pode abrir-se. Assim aconteceu, já na descida para Lisboa.

A minha amiga, de aparência sempre altiva e segura, de palavras firmes e sábias, de sorriso discreto, de olhar escondido, de movimentos cansados, de coração trancado, de repente, depois de muitas conversas sobre o amor e sobre a confiança, ousou olhar-me e confiar (Olhar-se e confiar). A viagem estava no fim e era preciso que ela cumprisse a sua missão, tal como uma terapia que, ao aproximar-se do fim, leva o cliente a tocar nos seus jardins mais secretos, com medo de ir embora sem a grande resposta.

No seu olhar tímido e nos seus gestos comedidos, havia um pedido subtil de um conselho sábio. Mulher inteligente que soube proteger-se dos seus medos e que pressente que está na hora de ter coragem de se abrir e testar as próprias asas! Nesse pedido subtil, já se vislumbrava uma vulnerabilidade.

Com o meu feedback, fez-se um silêncio repleto de emoção. Os seus olhos encheram-se de lágrimas e de vida. Nunca foram tão grandes! O seu rosto ficou rosado e os seus movimentos, mais redondos e harmoniosos. Aquela mulher sábia e distante transformou-se, em segundos, numa mulher mais jovem e calorosa. Havia alegria e curiosidade no seu olhar e uma emoção enorme na sua voz que assumira uma tonalidade aveludada e profunda. Os minutos iam passando e ela tornava-se mais jovem ainda, uma menina. Os seus gestos eram espontâneos e a voz mais fresca, soando entre pequenas gargalhadas e silêncios cheios. De repente, uma vontade enorme de chorar. De felicidade. Admitir a possibilidade de voltar a ver aquele homem, de falar com ele, olhos nos olhos, foi suficiente para desencadear nela um fluxo vital. Tornar o passado presente e reviver o sentimento amoroso. Percebeu que estava cristalizada numa atitude defensiva e que tinha trancado o seu coração para não sofrer. Percebeu que é preciso abrir-se à possibilidade de sofrer de amor, para voltar a ser feliz e deixar para trás as idealizações responsáveis pelos seus movimentos cansados. “Nunca me pareceste tão humana”, disse-lhe eu. “És tão mais bonita, assim vulnerável. Mais feminina e próxima”. Nunca me tinha sentido tão próxima dela.

De facto, quando as portas estão mal fechadas, a vida fica interrompida e o corpo esmorece. É preciso voltar ao sítio onde a história ficou incompleta, para a poder resolver e integrar. Sentir a dor para voltar a ter prazer.

Ao sabor de uma respiração profunda e sincronizada, os nossos olhares mantiveram-se em contacto como duas mulheres que se respeitam. A sua confiança em mim emocionou-me muito. E, neste processo, levantou-se um véu sobre a resposta que procurei nesta viagem. A confiança. A intuição. Preciso de confiar na minha intuição e sabedoria e, com base nela, tomar a decisão mais difícil da minha vida. Abrir ou fechar completamente uma porta. É preciso ter a coragem de olhar para dentro e sentir todos os medos, todas as tristezas, todas as raivas, para limpar o canal da comunicação e estar livre para amar de novo. As grandes decisões são solitárias e a verdade nem sempre é linear. Os nossos mestres e pais internos dizem-nos, muitas vezes, para não fazer isto ou aquilo, para não sofrermos mais uma desproteção. Mas é preciso ouvir o coração atentamente e sacar-lhe a verdade, para que o olhar volte a ter brilho.

Algures as nossas histórias se assemelhavam. E cada uma de nós viu na outra o espelho da esperança, a possibilidade de reviver algo que está morto e precisa de ter vida. No fim da viagem, separámo-nos verdadeiramente. Cada uma está só, com a sua tarefa existencial. Os nossos olhares que, em tempos se fundiram, hoje estão mais límpidos e nós, individuadas.

Despedimo-nos com uma enorme gratidão. Ela foi com brilho nos olhos e com a certeza de que teria que finalizar um ciclo para um novo se poder iniciar. Eu fiquei com a plena noção da minha força e da minha solidão. Tudo farei para voltar a sentir o mar dentro de mim e as suas ondas refletidas no meu olhar.

Tenho-me debruçado sobre o olhar dos meus clientes, e do meu próprio, observando as transformações ao longo dos processos terapêuticos e, por vezes, durante uma mesma sessão. A terapia bioenergética, na sua dualidade de análise e trabalho corporal, tem efeitos extraordinariamente reparadores e transformadores. E tenho percebido que cada transformação num cliente é uma maravilhosa oportunidade de crescimento para mim própria, aprofundando cada vez mais o meu olhar e o meu sentir. É impossível ajudar um cliente sem sincronizar com ele as batidas do coração. É preciso fazer uma dança, simétrica, às vezes e, outras vezes, completamente assimétrica para produzir mudança criativa. Nesta dança, é impossível estar de fora. Há clientes que têm o olhar congelado no medo o qual, uma vez trabalhado, poderá descongelar, despertando a tristeza profunda ou até o prazer da alegria. Outros há que parecem estar radiantes de alegria, mostrando um olhar aparentemente vivo e aberto e, através da mobilização da alegria, é possível reencontrarem o medo há muito reprimido. É preciso ir atrás do que o cliente nos traz, embarcar com ele no mar do espectro emocional dor/prazer. Não é possível resgatar o prazer sem passar pelos núcleos de dor e angústia. E, neste trabalho, tenho percebido que é fundamental levar os meus clientes a focalizar. Os meus olhos servem de espelho refletor do seu estado de alma. Outras vezes, reflito eu diferentes olhares, sobretudo olhares significativos para cada cliente, para que revivam algo que ficou esquecido. Os olhos são um portal para o mundo inconsciente e confrontam o cliente com a verdade. O terapeuta precisa de ter o olhar límpido e descontaminado para poder refletir com a máxima qualidade!

DEPOIS DO MEDO, NÃO HÁ MAIS MEDO…E O CORPO PODE DANÇAR

C., de 28 anos de idade, frequenta um programa de reabilitação por consumo de heroína, há cerca de 6 meses e está em terapia comigo. É um homem com muitas dificuldades sociais, entrando facilmente em pânico perante o conflito ou perante uma simples crítica. Nesse dia, entrou em pânico. Grande evolução. Em situações anteriores idênticas, ter-se-ia isolado e teria recaído. Nesse dia, procurou-me, cambaleando de tonturas, cabisbaixo, com mão no peito e a proferir palavras de desespero “estou muito mal; não consigo; não aguento; não posso”. Mal respirava e os seus olhos reviravam-se como se fosse desmaiar. Apesar de se ter dirigido à consulta, o seu corpo apresentava sinais de fuga. Não me olhava, abanava a cabeça, o seu corpo pendia assimetricamente para um dos lados, sentando-se perto da porta. Com a mão no peito, soltava gritos de dor. Não tinha consumido e isso era extraordinário. Fi-lo sentar-se e olhar para mim, respirando. Não conseguia fazê-lo mais do que 2 ou 3 segundos. Em cada inspiração e expiração, o peito e o estômago doíam-lhe sobremaneira. Massajei-lhe o pescoço, dando-lhe suporte na testa. Incentivei-o a abrir os olhos e a respirar, enquanto lhe massajava o pescoço e os músculos dos ombros. Ele gritava de dor. Pedi-lhe para mobilizar os ombros e os braços, soltando gritos; de pé, pedi-lhe que fizesse tudo isso e soltasse as pernas também. Era excessivo. Ficava tonto e cambaleava. Fi-lo deitar-se e, com firmeza, segurei-lhe o pescoço com uma mão e, com a outra, trabalhei-lhe alternadamente os músculos do pescoço, do peito, do diafragma, incentivando-o a respirar e a abrir os olhos, olhando para mim. Olhei-o com muita compreensão e, numa voz firme e tranquila, incentivava-o a respirar e a olhar-me sem medo. C. contorcia-se de dor e todo o seu corpo tremia, desde o maxilar, às mãos, braços e pernas. Enquanto se contorcia, era impossível abrir os olhos. Ele não podia ver o tamanho da sua dor. A minha voz, firme, tranquila e maternal, substituía o olhar. Ia-lhe dizendo que o frio era o medo a descongelar e que, no fim, o seu corpo ia aquecer. Expliquei-lhe, com muita tranquilidade, que o seu medo era muito grande e que era muito antigo e que era muito bom ele estar a descongelar. As dores do seu corpo deviam-se às fortes tensões crónicas musculares que, neste momento, estavam a ser atravessadas por ondas respiratórias mais intensas. Era importante segurá-lo com firmeza porque o pânico era tão intenso que parecia que o seu corpo se fragmentava em agonia. Continuei a ajudá-lo a respirar enquanto lhe pressionava os músculos do pescoço, da base do crânio, dos maxilares, do peito e do diafragma. As tremuras continuavam, mas as lágrimas começaram a correr. O choro tornou-se mais fluído, embora ainda longe daquele choro que se parece com um rio de água corrente. E neste vai vem de lágrimas e gritos, C. fala da culpa. Que estragou a vida dele, que era um fraco e que tinha muito medo de encarar as pessoas, que tinha vergonha, que tinha muita vergonha. Num ritmo contínuo, mas tranquilo, incentivava-o a respirar, pressionando-lhe os músculos, e dizia-lhe que ele tinha sido muito corajoso em vir à consulta, em não ter fugido, em ter encarado o medo. Que ele estava a tocar o seu medo mais terrível e mais antigo e que só é possível voltar a ter prazer, depois de atravessar o medo e a dor. E que eu acreditava que ele ia ser capaz. Só o deixaria ir embora depois de ele aquecer e se acalmar e ser capaz de olhar para mim, sem fugir com o seu olhar, para ser capaz de ver o seu medo e a sua tristeza profunda, e de ver também o resultado disso.

O seu corpo começou gradualmente a aquecer e a sua respiração tornou-se mais profunda. Os sons adquiriram uma tonalidade mais tranquila e o choro irrompeu como acontece a uma criança consciente da sua dor, da sua perda. Enquanto soluçava, olhava para mim e dizia “Bati no fundo”. Ajudei-o a respirar comigo, olhos nos olhos, transmitindo-lhe compreensão e confiança. Devolvi-lhe que a sua respiração estava mais fluida e profunda e que o seu corpo já não tremia e que os seus olhos estavam presentes e muito tristes. Nunca o tinha visto tão digno, tão presente! Já não sentia dor no peito e no estômago, ao respirar. De tempos a tempos, soluçava como uma criança depois de um grande choro convulsivo. E era gratificante ver que o seu diafragma respirava melhor, apesar da grande tensão que ainda tinha e que teria por muito tempo… ou até para sempre.

Fi-lo levantar-se e ficar em grounding, sempre mantendo o contacto visual comigo e respirando. Pedi-lhe que sacudisse o corpo, braços e pernas. Que soltasse as pernas intensamente e emitisse sons bem alto, olhando para mim. Grounding. Voltar a fazer os movimentos e os sons. Grounding novamente. Já não tinha tonturas. O seu olhar era outro. Brilhava e estava grande. Apareceram laivos de alegria e, com graça, voltou a saltar, como uma criança a descobrir o seu corpo. Ria-se e dizia que estava a gostar de fazer judiarias com o seu corpo. E tentava ousar cada vez mais. Em grounding, o seu corpo estava direito, como um homem íntegro.

Sentámo-nos e C. falou do seu bem-estar. Que se sentia leve e que aquele aperto tinha desaparecido. E que já era possível olhar-me, sem vergonha. Agradeceu-me profundamente. Mais uma vez fiz-lhe a leitura do que tinha acontecido e ele percebeu que o poço que é cavado pelo medo e pela tristeza é o mesmo que se encherá de alegria. É preciso atravessar o medo e, depois do medo, não há mais medo.

No início da sessão, C. encontrava-se no extremo esquerdo do espectro dor/prazer de que fala Lowen no seu livro “Prazer”. Depois desta sessão, que durou 2 horas, respirava melhor, os seus movimentos eram mais espontâneos e harmoniosos e o seu olhar estava vivo, alegre e presente. Sentia prazer e alegria. Terminou a sessão, falando do seu filho de 2 anos. Queria ser um bom pai e ter mais paciência com ele. Levei-o até ao espelho e sugeri-lhe que olhasse para si e cumprimentasse o novo homem. “Olá, C.!Olha para ti. Perdeste muito tempo. Ganha juízo. Tens um filho pequeno e és responsável. Muda de vida”, disse ele. “Vê como está diferente, C.?”, perguntei-lhe eu. “Estou. Estou mais vivo e já não sinto aquele aperto dentro de mim”.

Fiquei a observá-lo a ir-se embora. Movimentava-se pelo corredor, de costas direitas e cabeça erguida, e os seus braços acompanhavam harmoniosamente o ritmo das suas pernas. Em voz alta e bem colocada, despedia-se das enfermeiras daquele serviço. Notava-se uma vibração alegre e eu fiquei muito emocionada.

Na sessão seguinte, C. entrou com visível alegria e vitalidade. Falou imenso, sempre mantendo o contacto comigo, e contou as grandes novidades da semana: que passou a ter mais fome e a comer com muito apetite e que as dores de estômago tinham desaparecido, que falou muito no serviço dele, e sem medo, que brincou com os colegas, que se fartou de brincar com o filho e que, pela primeira vez, tinha olhado para os seus olhos. Contou também que fez imensas judiarias com o corpo – alguns dos exercícios que tínhamos feito aqui e outros que ele e o filho inventaram. Rebolou no chão e cantou muito. Reconheceu que quando os fantasmas interiores se diluem, é mais fácil estar disponível para os outros. É como se visse melhor. Nesta sessão, falou de coisas que lhe davam prazer e que tinha abandonado durante anos, e que iria retomá-las. Levou-me umas pedras lindas, pintadas por ele, que simbolizavam as suas vivências prazenteiras e dolorosas. Queria muito olhar para elas para nunca mais se esquecer do que sofreu e do que lhe dá prazer de viver. Nesta sessão, fizemos alguns exercícios corporais porque ele estava muito alegre e queria mexer-se. Desatou a inventar exercícios e eu fui atrás. Entretanto, um dos movimentos era o famoso twist, o que nos inspirou aos dois. Fartou-se de dançar e cantar. Nos movimentos mais lentos, cantou canções da sua terra.

Até aqui, pensei que este era um homem sem simbolismo. Com o descongelamento do medo, apareceu o seu lado alegre e criativo, o seu lado profundo e espiritual. O seu olhar mudou muitíssimo, passando a ver mais longe e mais fundo, passando a ver as pessoas e os objectos mais nítidos e a ver coisas que nunca tinha visto antes, como, por exemplo, o olhar curioso do filho. O olhar baço e esquivo transformou-se num olhar mais alegre e sem fuga. O seu estômago doente ganhara apetite e até engordara nos últimos dias. É incrível como tudo o que se passa nos órgãos internos, se reflete nos olhos. Um corpo com dores é um corpo com medo. Todos os seus músculos externos e internos estavam espásticos, afetando o funcionamento dos seus órgãos internos e refletindo um olhar baço e sem vida. Depois deste trabalho intenso, o funcionamento do seu organismo melhorou
substancialmente, refletindo também um olhar mais suave e vital, em perfeita presença.

Este é apenas o início do degelo. Durante uns tempos, C. saboreará o prazer da vitalidade e edificará um pouco mais a sua auto-estima. Estou consciente de que este é apenas o início de um trabalho longo e doloroso.

Foi muito importante fazê-lo olhar para mim. Nesse contacto, o cliente fica mais consciente do seu sentir. Fechar os olhos é não querer ver, é não querer sentir. Simultaneamente, o olhar empático, amoroso e tranquilo do terapeuta pode ser curativo e fazer o cliente perceber a outra dimensão da vida, que há pessoas capazes de amar e confirmar a sua existência. Entreguei-me muito a este trabalho. No final, os meus olhos estavam húmidos e senti-me mais humana. Respirava melhor e, quando caminhava em direção a casa, senti os meus passos firmes, num movimento harmonioso e sem pressa. Perante a dor de um ser humano e perante o milagre da transformação tudo fica tão relativo!

A PELE TAMBÉM VÊ

B. é um homem de 50 anos, cego de nascença, com uma estrutura defensiva marcadamente masoquista e esquizóide. O trabalho com ele tem sido dificílimo e fascinante ao mesmo tempo. Tem exigido de mim uma enorme criatividade e flexibilidade. É, muitas vezes, difícil perceber se se deve trabalhar o contacto e a aceitação incondicional ou se é melhor confrontar as defesas masoquistas, sinalizando a sua hostilidade terrível. Um engano provoca um grande sentimento de incompreensão. Outras vezes, o confronto é necessário, mas desencadeia nele uma atitude manipuladora, de vitimização e tentativa de culpabilização da terapeuta “és uma mãe má”. B. tem um raciocínio extremamente lógico e racional, o que dificulta imenso o trabalho. Preciso de estar muito centrada para, a todo o momento, surpreendê-lo e ajudá-lo a tomar consciência das suas emoções, do seu verdadeiro self escondido por trás da sua enorme armadura. O medo esconde a raiva assassina e paralisa-o. Em termos contratransferenciais, sinto uma grande impotência, e isso é riquíssimo. Faz-me mergulhar num trabalho de escavação profunda e de lapidação de um diamante em bruto. Outras vezes, é a hostilidade que esconde o medo e a vital necessidade de contacto. Aqui, preciso de estar disponível e de coração muito aberto, para não morder a isca que ele me lança para o rejeitar.

A dança com este cliente é muito particular porque ora envolve movimentos muito lentos, simples e regressivos, ora envolve movimentos fortes. O trabalho de descongelamento do medo e de criação de um espaço afetivo de aceitação incondicional que apoie a redescoberta da espontaneidade da criança tem sido o meu grande objetivo para este processo terapêutico. Faltou a este cliente o sentido da visão, o contacto de pele e o olhar atento dos pais direcionado para as suas necessidades vitais. A ausência de referenciais deixaram-no numa situação de medo permanente, sem orientação. Ajudá-lo a descobrir cada parte do corpo, os movimentos de gatinhar, de levantar e baixar, de levar à boca, de cuspir, de afastar e de chamar, de saltar e rebolar, de fazer sons, de tocar e explorar, de brincar, e a minha confirmação constante dessa descoberta, permite ajudá-lo a estruturar referenciais corporais e a aumentar o seu sentimento de existência. A pele também vê e, no contacto com esse espelho, a emoção surge. O seu “olhar” é de uma riqueza sem tamanho e tem-me ensinado muito a ver com os olhos de dentro!

Nesse dia B. trazia uma vivência profissional de humilhação e encurralamento. O seu relato foi breve, ao contrário do que acontecia na maior parte das sessões, e o tom da sua voz traduzia cansaço e desânimo. O seu corpo pendia como um fardo, com um olhar para um horizonte escuro sem norte nem sul. À minha frente estava um homem perdido e profundamente só. Quase uma inexistência. Fazia silêncio porque a inexistência não tem palavras. Senti uma profunda tristeza e um impulso enorme para o proteger. Ao mesmo tempo, tinha consciência de que aquele colo que eu lhe podia dar não teria a ressonância necessária. Seria preciso, simbolicamente, morrer e nascer de novo, para sentir o prazer e o calor de ser recebido com alegria.

Deitei-o e suportei-lhe a cabeça. Os músculos do pescoço pareciam cordas grossas. A tensão era fortíssima. Enquanto massajava os seus músculos, incentivava-o a soltar a voz. Apenas saía um sorriso defensivo e um riso de cócegas, ao mesmo tempo que encaixava o pescoço nos ombros e contorcia o seu corpo. Pressionava mais e ele continuava a contorcer-se de cócegas, com um sorriso de submissão. B. é um homem alto e forte, quase o dobro de mim. Pressionei ainda com mais força. A dor era visível, mas a sua atitude continuava a ser de submissão e de paralisação total. O que levaria este homem a não ser capaz de me tirar as mãos do seu pescoço e a submeter-se àquela violência sem qualquer resistência? Eu podia matá-lo se quisesse. Devolvi-lhe isso e ele respondeu: ”já senti esse medo. Tive medo que o meu pai me matasse”. “Como foi isso, B?”, perguntei-lhe. “Um dia, ele agarrou-me pelo pescoço e levantou-me. Tive tanto medo que pedi desculpa por uma coisa que não merecia pedido de desculpa”, respondeu com aquele sorriso meio sarcástico. “O que sentiu?” “Humilhação e muita revolta comigo mesmo, por me ter submetido”. E o seu rosto encheu-se de uma enorme tristeza, apesar do sorriso persistente. Fi-lo respirar um pouco, nesse silêncio, para sentir mais. Todo o corpo apresentava uma tensão enorme, como se estivesse preso, encurralado, e não se pudesse mexer. Pedi-lhe que mobilizasse o seu corpo todo. E ele mexia-se pouco. Desistia facilmente, esperando as minhas instruções, como se o corpo não soubesse o caminho. Pedi-lhe, então, que esperneasse, esbracejasse e soltasse a voz. Ele fazia-o enérgica, mas mecanicamente. Simulei que lhe apertava o pescoço, como o pai o tinha feito. Pedi-lhe que sentisse um pouco isso, antes de reagir. Encolheu o pescoço e sorriu, submissamente. O corpo ficou paralisado. As mãos e os pés ficaram rígidos e levantados como uns olhos com medo. Incentivei-o energicamente a reagir depressa, agarrando as minhas mãos e afastando-me. Lembrei-o que ele tinha mais força que eu e que, se ele quisesse, eu não podia, nunca, sequer chegar perto. Ele fê-lo como um menino obediente e logo se punha a jeito para eu voltar lá com as mãos.

A imobilidade era de tal ordem que resolvi mudar a estratégia. Senti que era preciso levá-lo a fazer exercícios sem conotação emocional porque esta provocava-lhe um medo paralisante: exercícios de mobilização do corpo todo, num contexto lúdico e com instruções claras, estimulando-o a empolgar-se cada vez mais. De cada vez que sentisse uma parte do seu corpo a ser tocada, teria que a mexer ou sacudir. E fui criando, assim, uma série de situações a um ritmo crescente de velocidade, de uma forma distraidamente lúdica, e para que ele pudesse desmultiplicar a sua energia até ao ponto de reagir espontaneamente a uma investida mais violenta da minha parte, sem que ele tivesse tempo de se defender. Assim foi. Comecei por deixar cair almofadas em partes do seu corpo, toques subtis, toques mais fortes, toques diferentes ao mesmo tempo em partes diferentes do corpo, etc. A dada altura, “sufoquei-o” com almofadas, pondo todo o meu peso em cima dele para o encurralar e ele desatou a sacudir-me. Insisti várias vezes, cada vez mais criativa na minha malvadez. Fui ao pescoço dele e ele segurou-me e empurrou-me logo a seguir, soltando um pouco mais a sua voz. Continuei a atacá-lo, sendo mais invasora, instigando-o a reagir com a mesma vitalidade. O cansaço era grande, mas ousei ir cada vez mais longe porque senti que B. ainda não tinha entrado em contacto com a raiva. Para além disso, era um menino bem comportado e faria o exercício mecanicamente, até ao fim da sessão, caso fosse necessário.

E nesta dança de pura sobrevivência, o meu instinto levou-me a apertar-lhe o pescoço com uma das mãos e a tapar-lhe os olhos com a outra. A sua voz soltou-se como nunca tinha acontecido antes e, com gestos largos, atirou-me, num só golpe, para o chão. “Boa, B., boa! Nunca mais vai deixar que lhe façam mal!”. Respirava intensa e profundamente. O seu corpo movia-se, solto e harmonioso. O sorriso tinha desaparecido por completo. À medida que os minutos passavam, o seu rosto ficava com ar mais grave e o pescoço latejava como um coração acelerado. Devagarinho, coloquei-lhe a mão debaixo da nuca e pedi-lhe que olhasse na minha direcção. “Olhe para mim, B”. A sua cabeça moveu-se, buscando o meu rosto e a tristeza profunda estava estampada no seu rosto e nos seus olhos brancos. Incrível como havia tristeza no olhar! Os olhos ficaram húmidos, mas não conseguia chorar. Tem uma dificuldade orgânica em chorar. A boca tinha uma expressão diferente.

O trabalho corporal intenso ajudara este cliente a sair da paralisação do medo, a mobilizar a sua energia de sobrevivência (raiva) e, finalmente, a sentir a tristeza. Tapar-lhe os olhos ao mesmo tempo que lhe apertava o pescoço atualizou a sua vivência de terror e deu-lhe a plena consciência da sua cegueira e da imensidão da sua desproteção. Quando, no início da consulta, falou do seu encurralamento e de se sentir completamente perdido, e do seu corpo falar de tudo isso, não imaginava que o trabalho bioenergético pudesse levar-nos tão longe! Mas, entretanto, o seu pescoço foi-me falando desse encurralamento e os seus olhos, juntamente com a sua atitude corporal, de desorientação. O seu olhar branco, sempre em busca de algo, chamava-me a atenção. Havia ali uma barreira. Essa falta de contacto comigo perturbava a minha compreensão e o meu envolvimento empático. Fazê-lo olhar para mim, como se me visse, ajudou-me a estar mais próxima e ajudou-o a ele a conectar-se mais profundamente com o seu sentimento. Respirámos juntos, olhando-nos nos olhos da alma. A minha mão na sua nuca dava-lhe um grande sentimento de proteção e de confirmação da sua existência.

REVELAÇÃO

A. é um homem de 30 anos, fotógrafo. É estrábico, tem uma flagrante assimetria nos olhos e tensões fortíssimas em todo o corpo. Em grounding, verga-se para a frente e para um dos lados, olhando por cima dos seus olhos estrábicos. Quando respira, franze a testa como se sentisse dor e abre a boca como um animal ferido e enraivecido. O som sai com dificuldade, como se fosse um grito de dor. Os pés são arqueados, mal tocando o chão, o pescoço é um bloco imóvel encaixado nos ombros erguidos e a respiração é superficial. As pernas são muito tensas e apresentam reduzida flexibilidade. Altamente sedutor e controlador nas suas relações, liga-se aos outros, pela cabeça. Do ponto de vista psicológico, é também muito rígido e inflexível. Um dia, fiz-lhe o espelho da sua postura e ficou muito impressionado, dizendo: “não há integridade na minha postura”. Chamou-me a atenção um aspeto: procura alcançar, em tudo o que faz, a maior qualidade e pediu-me que o ajudasse a detetar as suas batotas.

Quando se movimenta em direção a mim, vem aos ziguezagues e pisca os olhos alternadamente como quem faz um jogo de esconde-esconde. Eu viro-me de frente para ele e ele foge outra vez, posicionando-se de lado para eu não o ver e ele me poder espreitar e manipular. Fico tonta e com uma enorme tensão nos olhos. Peço-lhe que me focalize e respire. Fica assustado e foge de diversas maneiras; fala imenso, coça a cabeça, revira os olhos de sono e boceja, pisa o chão com força para sentir mais os pés. Um desassossego. Defende-se com a conversa, sendo bastante eloquente e quase impossível de o deter.

Este cliente durante muito tempo não  me olhava verdadeiramente. Quando falava comigo, desfocava. Um dia, encontrou-me na rua e não me reconheceu. Construiu uma imagem de mim que não era eu. Falava de mulheres que eram de uma maneira e, afinal, eram totalmente diferentes. Os seus olhos estavam tão desfocados que as suas perceções o enganavam. A sua consciência emocional era quase nula. Por baixo daquela capa de sedução e brilhantismo intelectual, percebi nele um medo de morte e uma raiva muito primitiva.

Tenho desenvolvido com este cliente um trabalho de consciencialização do corpo e de aumento gradual da vitalidade, bem como um trabalho sobre o contacto. É um trabalho subtil e, dado o enorme simbolismo deste cliente, os seus insights são imensos e ricos. Os olhos deste homem têm-me conduzido por inúmeros cenários onde nos temos encontrado e surpreendido.

Naquele dia, A. estava aparentemente bem, sem nada de especial para trabalhar. Pedi-lhe então que olhasse para mim e respirasse, para percebermos melhor o que poderia precisar nesse dia. A dificuldade do contacto era evidente, pela desfocagem, pela falta de emoção no olhar e pela respiração superficial acompanhada de tensão nos ombros. No entanto, referiu que estava bem e que se sentia bem comigo, apesar de reconhecer o desconforto de olhar para mim.

Propus-lhe um trabalho sobre a construção do vínculo ao longo da primeira infância. Iríamos situar-nos no tempo em que ainda não havia palavras e a relação se estabelecia ao nível sensorial e emocional. Regressaríamos ao tempo em que se aprende a empatia, através da sincronização do olhar, da respiração, dos movimentos, numa dança amorosa e prazenteira. O tempo em que o olhar da criança é enorme e lúcido, capaz de compreender todas as verdades e todas as mentiras. Faríamos um regresso à idade da inocência. Ficámos sentados frente a frente, em contacto visual e sincronizando a respiração. A assimetria do seu olhar estava muito acentuada.  Esta situação provocava em A. uma necessidade imediata de fuga, pelo que lhe sugeri que pusesse as mãos à frente e, atrás dos dedos, espreitasse a mãe, em segurança. Eu não o veria, mas ele poderia ver-me e olhar-me nos olhos sem medo, explorando o olhar da mãe e o seu próprio. Assim o fez. Percebi que ele estava a tirar partido da experiência, brincando e colocando as mãos em diversos ângulos. Deixei-o ficar bastante tempo, enquanto o meu olhar se mantinha caloroso. Percebi que ele estava confiante, provavelmente por estar em contacto, mas poder controlar sem ser controlado, e que poderíamos passar à etapa seguinte. Agora, o objetivo era ele captar o olhar da mãe distraída e desatenta.  O estrabismo deste cliente e a sua fuga sistemática ao contacto intrigavam-me. Seria o olhar da mãe aterrador? Para onde olharia ela quando tratava do seu bebé? E decidi explorar. Comecei por estar apenas distraída, olhando para o lado. Ele buscava o meu olhar insistentemente. Assim que eu correspondia, esboçava um sorriso de satisfação e imediatamente começava a fazer macacadas defensivas. Nesse momento, eu voltava a olhar para outro lado e ele voltava a buscar-me insistentemente. Eu fugia cada vez mais, para o estimular. Percebi que A. estava a gostar da brincadeira e que ainda não tínhamos tocado no ponto crucial. Mas deixei-me levar pela brincadeira, para que ele entrasse cada vez mais no exercício e não tivesse necessidade de controlar racionalmente este trabalho. A dada altura, quando ele conseguia que eu olhasse para ele, ousei fazer olhares diferentes.  De zanga, de tristeza, de medo e outros mais brincalhões. Ao olhar de zanga, tristeza e medo ele respondia com brincadeira, para me demover, e com uma zanga estudada e fingida. Ao olhar brincalhão, respondia com brincadeira.

Continuava a sentir que o contacto conseguido era muito superficial e que as reações de A. aos meus olhares eram mais ou menos defensivos. Nenhum daqueles olhares lhe provocava medo ou descontrolo. Todos eles envolviam contacto. Teria que experimentar a ausência de contacto, mas olhando para ele. Teria que desfocar o meu olhar como ele o fazia e, quem sabe, a própria mãe. Assim fiz. Via apenas uma mancha e senti no meu corpo uma energia muito reduzida. Senti-me como se não estivesse ali. A. teve uma reação absolutamente surpreendente. Agarrou em mim com força, como se tivesse garras e desatou a gritar. Mantive o olhar desfocado e deixei que ele desesperasse mais. O seu grito era cada vez mais intenso e a força com que me agarrava, maior ainda. Depois, foquei-o e vi o seu olhar plenamente em contacto, desesperado como uma animal ferido e a pedir socorro. Um misto de medo, de raiva e de apelo de sobrevivência. Fiz um olhar atento e protetor, mas ele não via. Continuou a abanar-me, cada vez mais zangado e próximo, enfiando as garras nos meus braços. Os seus olhos ficaram enormes, os dois do mesmo tamanho, e completamente focados. O estrabismo desaparecera quase por completo. Eu continuei presente, para que ele pudesse deixar de ter medo e se permitisse zangar sem sentir perigo. Isto durou uns minutos. Quando a raiva assumiu proporções mais violentas, parou bruscamente o exercício, afirmando espantado: “Goretti, isto mexeu mesmo comigo. O seu olhar era aterrador! Senti-me desamparado e terrivelmente zangado, como se estivesse a correr perigo. Foi forte. Que exercício! Parabéns, Goretti!”. Não resistiu a elogiar-me. “Sabia que o seu olhar é igual a esse olhar? Sinto muitas vezes que não me vê e que o seu contacto comigo é muito superficial”, retorqui-lhe com serenidade e firmeza. Ficou sem palavras, olhando para mim e, de repente, percebi-lhe uma tristeza. A., que tem sempre um argumento e uma racionalização a fazer, ficou sem palavras. A seguir, falou das sua relações com as mulheres e compreendeu que sempre foram funcionais. Desfazia-se em gentilezas, mas isso não eram mais do que manobras sofisticadas para as manter à distância e controladas. Conduzia as relações pela cabeça, sendo o mais perfeito dos homens, mas não sentia nada e as necessidades delas não eram sequer tidas em conta, tal como a mãe fazia com ele. Nesses processos sofisticados de manipulação, não olhava para elas, para além de escolher sempre mulheres dependentes e com baixa auto-estima que receavam não estar à sua altura. Um dia, uma delas, por quem pensou ter-se apaixonado, foi-se embora e ele perdeu o chão. Foi nessa altura que procurou a terapia.

Pedi-lhe que olhasse para mim. Os seus olhos mantinham-se mais vivos e centrados, apesar da evidente tristeza. Devolvi-lhe o quão gratificante era vê-lo assim tão integrado e tão perto de si próprio. De mim, também estava mais perto porque percebia agora que não se defendia, nem me tentava agradar. Nesse instante, segurou-me nas mãos e percebi-lhe uma ternura verdadeira no olhar. “Obrigada, Goretti. Foi muito bom ter sentido e compreendido um pouco mais. Mas acredito que talvez nunca seja capaz de mergulhar na intimidade com alguém. Isto é possivelmente o mais longe que conseguirei ir.”

Nestes momentos de verdade, sinto que o silêncio e o olhar empático são a única coisa a fazer. É preciso aceitar que os nossos clientes possam não ir tão longe quanto gostaríamos. E nesse momento de verdade, encontrei-me também com a minha própria tristeza, com a minha impotência. Fiquei um pouco com a minha criança interna, a recordar os meus sonhos de amor e as minhas separações, compreendendo que nem sempre é possível para o outro confiar e deixar-se amar. Serei eu capaz também?

Hoje em dia, é interessante constatar como A. tem modificado o seu olhar sobre a vida. Consegue olhar para os olhos dos pais e vê-los a eles, distanciadamente, sem ressentimento. Muitas vezes, deambula pela cidade, observando as pessoas e vendo coisas pela primeira vez. Teve um período em que nem conseguia formular muito bem as suas ideias. A eloquência que lhe era peculiar deu lugar ao ver e ao sentir, e parecia fascinado. Entretinha-se a observar o rosto de velhos amigos e descobriu que eles eram totalmente desconhecidos e que, com o passar dos tempos, não tinham rigorosamente nada a ver com ele. A coisa mais extraordinária é que descobriu que uma determinada mulher, a quem reconheceu desde sempre uma beleza inigualável, era de facto feia e desarmoniosa e que foram os seios grandes e o colo de mãe que o encantaram e o cegaram.  Hoje em dia percebe que aquele padrão já não o seduz e que os amigos tinham razão quando lhe diziam que ela não era assim tão linda! Um dos seus passatempos favoritos é brincar com o seu afilhado de dois anos. Observa-o intensamente e brinca com ele, com o olhar. Promove o vínculo e, com isso, cura um pouco as suas velhas feridas. Está também mais sozinho, mas menos só. O trabalho sobre o olhar conduziu-o ao seu próprio coração e fê-lo compreender melhor a natureza e a qualidade dos seus vínculos. Percebeu que alimentou, durante anos, relações funcionais e sem rosto e que a separação faz parte do vínculo. Percebeu também que o seu coração tem feridas demasiado profundas para que algum dia seja capaz de conhecer a verdadeira intimidade, mas que está a aprender a ser mais íntegro e verdadeiro nas suas relações. A grande mudança manifesta-se nas suas fotografias que deixaram de ser idealizadas e passaram a ser mais reais.

REFLEXÕES FINAIS

Quando o olhar se desvia por causa do medo de ver, deixa de poder projetar a realidade, para projetar as velhas crenças e as velhas imagens, originando uma cegueira mental. O mundo das perceções fica afetado porque o rio que corre no interior do corpo é impedido de transbordar, ficando retido algures e aprisionando a verdadeira emoção. E, assim, o olhar reflete apenas as águas estagnadas e turvas impossibilitando de ver adequadamente através delas. Eu olho e não vejo. O outro olha e não me vê. E torna-se impossível o prazer do encontro! Isto faz-me pensar que muitos dos nossos clientes vivem ainda em estado de choque e que só o reviver do choque poderá remexer as águas paradas e romper a barreira. Quando isso acontece, o cliente recupera a consciência do medo e do perigo e resgata o grito que salva. Com um terapeuta experiente e amoroso, pode experimentar o entorno protetor que ajuda a juntar as partes do corpo que em tempos se dissociaram ou se fragmentaram, reduzindo o pânico e metabolizando a emoção. Neste processo, o rio limpa os caminhos do corpo, levando-lhe oxigénio novo, excitando partes que estavam anestesiadas, sem vida. E o olhar recupera a limpidez e o brilho próprios de um rio de águas correntes, sempre renovado.

Também é claro que o olhar poderá, em alguns casos, nunca ficar totalmente límpido porque as experiências aterradoras precoces pertencem a uma idade em que ainda não havia palavras, sendo as memórias apenas corporais. O cliente aprenderá a reconhecer a emoção e a cuidar dela da melhor maneira possível, mas nunca terá a memória exata para poder dar-lhe palavras ou um contexto, ficando a marca da desconfiança básica. Permanecerá sempre um desconhecido dentro de si, embora possa aprender a dialogar com ele. Poderá dar-lhe nomes, atribuir-lhe formas ou cores, poderá convertê-lo num dragão amigável e cúmplice, num sinal protetor de alerta. E, no fim, até poderá sorrir para esse desconhecido sem rosto porque aprendeu sabiamente a sentir a sua presença e a dar-lhe um pouco de luz.

Algures num livro, li algo que me ficou para sempre. “Sofrimento é uma área da nossa existência onde o calor do coração não conseguiu ainda desenvolver-se. Sofrimento é estar à espera de amor”. Daqui retiro que o outro só nos magoa porque, algures, tocou numa ferida que já habitava em nós. E, assim, é um privilégio termo-lo como espelho para que possamos lamber essa ferida até cicatrizar.

Estou cada vez mais convencida de que o trabalho do terapeuta é um trabalho de travessia do medo para alcançar o amor. O medo e o amor estão em extremos opostos. Onde há medo, não pode haver amor e o contrário também é verdade. O terapeuta deverá “limpar o seu “ecran” vezes sem conta, olhando para dentro, à procura do que ainda está cego e morto em si, dando-lhe luz e vida. Com isto, resgatará o brilho e a limpidez do seu olhar e poderá conduzir o cliente, de forma amorosa e lúcida,  pelos caminhos árduos do processo terapêutico.  O terapeuta só poderá ajudar o cliente a enfrentar o medo se conhecer o seu próprio medo e souber aceitar as transferências negativas daquele, com a inteligência do coração e devolvendo a resposta justa que em tempos faltou. Isso é a própria dinâmica do amor.

Termino com um poema simples que fala subtilmente do olhar profundo, do degelo e do amor.

“Dai-me espaço

Espaço amplo onde me deito

A fiar cabelos de crianças

Enlaçadas no meu peito

Procurem olhares de ferro que abri

Água dura derretida

Consciência entendida

Certeza de estar aqui”

Ana Maravilhas

 

*Artigo publicado na revista francófona Le Corps et L’Analyse (Le regard dans l’analyse bioénergétique

publication date 2006  publication description Le Corps et l’Analyse – Volume 7 – Numéro 2 – Automne 2006)

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