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INNOCENT WHEN YOU DREAM

Innocent when you dream é o título de uma música maravilhosa de Tom Waits. Roubei o nome para dar voz ao texto que se segue.

Não sou daqui nem dali, venho de outro lugar. Tenho por hábito bater com os pés no chão, levantando sonhos.

Não sigo o fado, sigo o rasto da curiosidade, caindo e levantando-me de sucessivas ilusões.

A vida é isto, uma viagem à procura do Self, um enigma que se vai resolvendo, uma colheita de bênçãos, sempre à mercê da imprevisibilidade das experiências.

Choro e rio à frente do espelho, para captar melhor o entendimento das coisas.

Danço para movimentar a minha alma feliz, soltando emoções no espaço entre mim e as pessoas.Toco música para atrair corações afins, como fazem certos animais quando vocalizam para chamar os seus pares e as suas crias.

Faço tudo isso, também sozinha, numa conversa animada entre mim e o Universo.

Tenho vindo a descobrir que as coisas mais bonitas são muito simples. Normalmente, não fazem barulho, chamando a atenção pela luz que irradiam. Solta-se uma espécie de leveza, numa longa e completa respiração…Ahh!

São esses, os melhores momentos. Aqueles, saboreados de olhos fechados, bem devagar, onde não há intervalos de tempo. Aqueles em que já se poderia morrer a seguir.

A vida é muito maior do que ser-se daqui ou dali. É um infinito surpreendente! Basta ser inocente e acreditar!

6 março, 20

VÓRTICE

Fui de viagem e perdi-me no caminho.

Escureceu de repente e, envolvida num vórtice de memórias passadas, esqueci-me de mim.

Ali fiquei às voltas, entontecida, torturada por monstros já velhos, sem rosto, rezando que alguém me viesse buscar.

Ninguém me buscou.

Fui salva pelo vórtice, pelos monstros e pela loucura que, entretanto, morreu de cansaço e de espanto.

És tu?

Que me aconteceu?

Estremunhada, ajeitei o cabelo e voltei à estrada.

Vi rostos familiares, sonhos em pausa, saudades à espera de serem sentidas.

Estavam todos ali afinal, de feições desanuviadas, sorrindo para mim.

Que te aconteceu?

Procurámos por ti!

31 jan, 20

 

O MANELINHO TÍMIDO E A MENINA INSEGURA

O Manelinho quer chamar, mas não chama.

Em vez disso, esconde-se atrás de vestes sóbrias para que ninguém dê conta dele e, pela calada da noite, coloca bilhetes ininteligíveis debaixo da porta da menina insegura.

A menina insegura fica confusa. Enganaram-se, se calhar. Não devia ser para ela. E segue o seu caminho, ficando no mesmo sítio, com uma sensação estranha. Seria para ela?

“Ela não gosta de mim. Não me quer ver. Recusou o meu convite. Não sabe ler os sinais. Não percebeu que sou eu?”, rumina o Manelinho.

De tempos a tempos, chegam sinais ambíguos, já sem vestes sóbrias, apenas com óculos escuros que protegem os olhos de revelar o coração. A menina insegura morre mais um bocadinho porque amor, aquilo não foi afinal.

O Manelinho insiste em saber da menina insegura. Sai durante a noite e procura ler nas estrelas quem é ela verdadeiramente. Procura informação em todas as fontes, menos chegar-se a ela e perguntar: olá, posso conhecer-te melhor?

E a menina insegura confirma que o Manelinho se desviou, mas que gosta dela, só um bocadinho.

 

Do cimo do monte há um corvo que observa e diz: Que grande mal entendido!

31 jan, 20

 

SER LIVRE DENTRO DO AMOR

Ser livre é não ter amarras.

Amarras são as nossas prisões mentais, tudo aquilo que nos mantém atrás, na imobilidade.

São circuitos de pensamentos sem corpo, perdidos no espaço, de olhar vazio.

São palavras presas na garganta, gestos retidos nos músculos, sufocados pelo medo.

Amarras são apegos ao passado, pela incapacidade de enterrar os mortos e dizer adeus.

É não perdoar a mãe. Não perdoar o pai. Não confiar em ninguém.

São corações fechados com medo de amar, gritos calados no fundo do corpo.

É a alma perdida em busca do abraço quente da terra húmida e doce.

São dúvidas amontoadas em cima de mágoas, transformadas em certezas perigosas. Muito perigosas.

Amarras são gritos de socorro, para dentro, que nos roubam saúde e paz.

É viver dentro de gaiolas douradas.

É achar que não há ninguém.

É sofrer sem significado.

É confundir desapego com autocomplacência e ter perdido a inocência de correr atrás.

É deixar-se endurecer, perder a habilidade das linhas curvas, do prazer de viver, de dar e receber.

É fugir, pensando que se vai em direção à liberdade.

VIVER SEM AMARRAS É CONSTRUIR UM CHÃO SEGURO DE AFETOS, PARA DELE NOS LANÇARMOS NOS NOSSOS VOOS.

É SER LIVRE DENTRO DO AMOR.

30 jan 20

 

SE O ARREPENDIMENTO MATASSE

“A angústia de Matilde não passara com o tempo.

– Não me conformo… o que fiz eu? – chorava Matilde, inconsolável.

– Não confundas a realidade, Matilde! – dizia a mãe, já mais firme do que terna –Dá tempo ao tempo. Os temas importantes da vida, quando inacabados, voltam sempre à carga, para serem fechados ou abertos. Ou, então, encurta o tempo e dá um passo. Sai desse circuito fechado pouco saudável. – continuava a mãe, num tom elevado.

Matilde arregalou os olhos perante a lucidez da mãe e a sua própria inquietação.

– Por muito certo que seja um assunto, por muito justas que sejam as palavras, elas devem ser comunicadas presencialmente, olhos nos olhos. Entende, mãe? – insistia – É isso que me mata!

Matilde tinha ousado esclarecer um assunto importante com o seu namorado, por telefone, interrompendo-se a comunicação por algum tempo. Tinham-se passado quase 3 meses e a falta de olhar e de mãos daquele momento convertera-se numa espera dolorosa.

Matilde era uma mulher exigente consigo mesma. Por trás das suas atitudes assertivas, havia uma pessoa vulnerável e preocupada com o sofrimento dos outros. Passou quase três meses a morrer de arrependimento, apesar de segura das suas nobres intenções. Apenas queria dar espaço a que um certo ciclo se encerrasse, protegendo com unhas e dentes a integridade da nova relação. Era uma mulher leal e profundamente idealista, e o sofrimento dos últimos tempos ensinara-lhe que “o tudo ou nada da sua vida” tinha que morrer e ser transformado em emoções mais brandas e realistas.

Munida de coragem, decidiu quebrar o silêncio, precipitando um encontro. Que seria dela, sem aquela mãe lúcida e esclarecida!?

Não sabia o que iria acontecer, mas sabia que, pondo palavra nos silêncios, um rumo mais tranquilo seria dado à sua vida.” (excerto de um pequeno conto)

As histórias de vida são joias que gosto de partilhar, pelas lições que encerram. Muita gente se revê nos contos que escrevo. Nem eu às vezes sei a quantas dezenas de pessoas me dirijo, sem querer.

Este pedaço de conto remete-me para as armadilhas dos tempos modernos, onde cada vez mais nos escondemos atrás de uma realidade virtual, por medo de exposição a emoções intensas. Os assuntos importantes precisam do calor presencial e de feedback imediato. O isolamento emocional pode conduzir as pessoas à depressão.

Remete-me também para o perigo de algumas palavras, quando proferidas fora de uma situação de contacto securizante. Em alguns casos, os interlocutores podem ficar entregues ao abandono, a pensamentos destrutivos e a interpretações perigosamente subjetivas daquilo que foi dito.

Remete-me para o significado do “tudo ou nada”. Entendo a preocupação de Matilde.

É possível que “o tudo ou nada” seja injusto para todos nós, porque somos humanos, inacabados, vulneráveis, com necessidade frequente de voltar atrás para fazer melhor. É assim a vida. Um processo em espiral, com retornos à sombra, para voltar à luz com mais força. O tudo está cheio de imperfeições e o nada tem sempre uma pequena vida a despontar.

A verdade é incompleta, está sempre em transformação. Aquilo que sempre foi verdadeiro para Matilde, parece converter-se agora, perante a experiência de dor, em algo mais redondo, sem arestas. Sem perder a convicção de que é preciso estar-se inteiro nas escolhas, aprendeu um pouco mais sobre a sua vulnerabilidade e que a humildade é a pedra de toque do crescimento.

Há uma Matilde dentro de muitos de nós. A partir desta história verdadeira, chamo a atenção para quatro asserções de extrema importância:

– É urgente sair do isolamento e pedir ajuda.

– É preciso sair da anestesia afetiva que nos impede de viver com inteireza as nossas relações.

– Antes de assumir uma posição, é recomendável meditar um pouco sobre a nossa capacidade de a sustentar.

– Quando se fala de amor, é imperativo voltar às conversas com voz, olhar e toque.

Espero que Matilde regresse ao equilíbrio, muito em breve.

24 jan, 20

TRUZ TRUZ, IMPORTA-SE?

Há uma arma poderosa que se chama contratransferência corporal. O que é isto? Basicamente, é a capacidade de sentir, no nosso próprio corpo, aquilo que nos chega dos outros. É uma arma poderosa, dizia eu, e pode ser incómoda também, quando não podemos fazer uso desse poder. Acontece-me frequentemente, sobretudo fora do contexto terapêutico. Aqui, curiosamente, é tudo mais fácil porque há acordo entre as partes sobre o levantar de todos os véus, com vista ao crescimento desejado.

Não se pode chegar a qualquer pessoa, assim sem mais nem menos, e fazer-lhe a leitura do que se passa com ela e das consequências que isso pode ter na sua relação com os outros. Sujeitamo-nos a levar um empurrão ou uma resposta torta. “Alguém lhe perguntou alguma coisa? Cada um sabe de si e Deus sabe de todos!”

“Desculpe”.

Se a informação fosse suficiente para produzir conhecimento e mudança, bastaria traduzir por palavras o que tantas vezes recebo no meu corpo. Com os nós dos dedos, bateria delicadamente à porta das costas da pessoa, e diria assim:

“Truz truz, importa-se? Sabia que está com o corpo todo bloqueado, de uma raiva com barbas brancas, e se calhar é por isso que a senhora tem os lutos todos por fazer? Adianta pouco andar às voltas na cabeça, a tentar compreender o que se está a passar consigo. Experimente, em vez disso, gritar, dizer impropérios, bater com a porta ou dar um murro na mesa, tomar uma posição, em vez de estar à espera que a outra pessoa concorde consigo. Autorize-se a libertar esse peso do seu corpo. Se não conseguir sozinha, aconselho-a vivamente a fazer terapia, mas corporal, para poder aceder à sua verdadeira fonte de autoconhecimento. Passam-se os anos e poderá estar a perder tempo e oportunidades. Oportunidades? Sim, oportunidades. Com esse corpo sufocado de emoções recalcadas, não tem espaço para incorporar o prazer na sua vida. Enquanto não deitar cá para fora anos e anos de zanga, anos e anos de passividade, anos e anos de desqualificações, incompreensão, medo, carência e solidão, não conseguirá chorar tudo o que tem para chorar e dar valor aos privilégios que tem na vida. Quais privilégios? A sua inteligência, por exemplo, os seus talentos, a sua capacidade para fazer dinheiro e amigos, aquele homem que você diz que é maravilhoso, o sol deste país, a sua casa bonita, o mar, a serra, o seu carro, a sua saúde de ferro. Mas cuidado! Trate bem da sua vida emocional, não vá a energia estagnar, e ficar doente! Peço desculpa por ser tão bruta, mas conheci uma pessoa que era um leão, um cavalo de força, um poço de saúde e que, por ter uma cabeça casmurra e falta de humildade, aniquilou, até à morte, os seus recursos energéticos. Peço desculpa mais uma vez por estar a ser tão bruta, mas é assim que o seu corpo está a interferir com o meu. Estou apenas a traduzir o que vem daí. Se quiser o contacto de uma colega, dou-lhe já. Mas, por amor de Deus, saia da cabeça, largue o ipad e vá a correr tratar de si!”

Quando é que as pessoas se convencem que as emoções têm que entrar em circulação, sob pena de ficarem estagnadas no corpo e provocarem aquilo que se chama de estase (estagnação energética)?

“Truz truz, sabia que a estase está na origem de todas as doenças? Há tanta informação à solta acerca disso…! Não duvido que possua essa informação, mas talvez só na cabeça. Não sabe no corpo, não sente. Não sente porque está desconectada de si própria, e é exatamente por isso que a informação não surte efeito. Sem corpo não há verdadeiro conhecimento! Sugiro que largue o ipad e vá até à beira-mar respirar fundo, mas fundo mesmo! Expirações profundas até perder o fôlego. Depois inspire novamente, e assim sucessivamente. Veja se consegue não ir ver as mensagens durante uma hora que seja. Não vai perder nenhum negócio só por estar a viver um bocadinho. E, se perder, é porque esse negócio não valia a pena. Tudo o que nos tira um bocado de vida, vale pouco a pena. Já agora, também há muita informação acerca do facto da estase afetar as nossas relações. Se a sua energia está estagnada na zona lombar, no diafragma, nos braços, na garganta, nas pernas, eu sei lá, não vai conseguir comunicar convenientemente as suas intenções, abraçar, reclamar os seus direitos, olhar com olhos de ver, sair da mira dos predadores, amar, estar ali inteira! Não se admire de só atrair pessoas tóxicas e de achar que a sua vida pessoal é uma tragédia grega. Pense bem nisso!

Truz truz, e já agora, abandone essa crença pessimista de que a vida é uma fatalidade contra a qual não há nada a fazer! Há sim, e muito! Bem sei que há muitas injustiças, pessoas boas que morrem, guerras e roubos. Mas se aprender a enquadrar o significado da dor, vai deixar de ser uma mártir e de rejeitar as fontes de abundância. Peço desculpa por estar a ser tão bruta!

Truz truz, não se esqueça que está na hora de pedir um abraço. Saia desse isolamento e vá buscar o que tanto precisa. Eu? Sim, você. Está com o corpo todo bloqueado, respira mal, tem poucos abraços, pouco amor e pouco sexo, só trabalha, acode aos aflitos como se fosse uma bombeira, e depois não quer ficar doente! Já agora, pare também de se sentir culpada por tudo e por nada, pelas pessoas que sofrem, pelas crianças que choram, pelas cheias que assolam o país, por estar viva. Você merece ser feliz e não tem culpa que os outros não tenham capacidade para ser felizes e prósperos. Trate de agarrar o touro pelos cornos, seja feliz, tenha prazer porque, dessa maneira, estará seguramente a aumentar a massa crítica do mundo, a vingar aqueles que não souberam viver e a contribuir para a felicidade universal.

Se não acredita em mim, vá ler artigos da especialidade, mas só um bocadinho! A seguir, vá a correr pedir um abraço. Vários. Muitos e demorados. Com isso, saberá de imediato, no sangue feliz que lhe corre nas veias, o que vale realmente a pena!”

O que está aqui dito por palavras nuas e cruas pode levar meses ou anos a ser consciencializado pelas pessoas. É este o meu trabalho. Ensinar a ler o corpo, conduzir as experiências, validar, esperar, aceitar. Ser terapeuta pode ser uma forma de amor incondicional porque tem, como requisito, a inteligência de respeitar o timing e os limites das pessoas, sem desistir.

Na nossa vida pessoal, por causa da intensidade das paixões, apegos e urgências, o exercício é mais difícil, mas é o caminho mais justo e vale a pena. O universo é sábio e traz todas as respostas e recompensas.

Ainda assim, há palavras com muito corpo, com uma força tal, que podem deixar uma semente fértil no coração de alguém… “Truz truz, importa-se? “

17 jan, 20

PÉ DE ORELHA OU INTIMIDADE

 

Observo muito, todos os dias. Tenho um impulso muito grande para ajudar, que fui refreando ao longo dos anos. Hoje, limito-me a ficar atenta, de braços abertos, pronta a agir, se alguém estender a mão. É contraproducente anteciparmo-nos às pessoas, a menos que estejam à beira do precipício. Aí, sou veloz como a chita. É muito delicado interferir no processo delas. Cada uma tem o seu ritmo e o seu limiar de perceção. Um toque mal dado pode levar alguém a fechar-se ainda mais. Por isso, espero por sinais claros.

Isto tudo, a propósito do que tenho vindo a observar em algumas relações de amizade e de casamento.

Muitas pessoas não conseguem estar sozinhas porque o vazio faz vir à tona histórias passadas mal resolvidas, carências e memórias difíceis. Observo, frequentemente, que essa busca incessante de companhia é inversamente proporcional à intimidade construída. Pois é. Quem não sabe estar consigo mesmo, não sabe também estar em relação, porque estar em intimidade com alguém é estar em contacto com emoções, necessidades e desejos, nossos e dos outros.

Como é que isto acontece? Eu explico. Para algumas pessoas, a carência é um buraco que precisa, a todo o custo, de ser tapado. Basta-lhes ter companhia, uma troca de presença física e uma orelha para acolher as histórias diárias, desde que os deixem em paz, no seu isolamento emocional. Já bastaram o excesso de controlo da mãe ou do pai, e as primeiras desqualificações e rejeições. É claro que nada disto é consciente. O problema reside no facto de inúmeras pessoas desconhecerem os seus padrões de fuga ao contacto mais profundo. Essas defesas aparecem silenciosamente, fazendo repetir-se a história, conduzindo novamente a desilusões amorosas e solidão. Portanto, a carência retroalimenta-se a si própria: conduz à busca desesperada de companhia, mas, para não sofrer novamente os mesmos dramas, a pessoa resguarda-se emocionalmente da outra, criando isolamento afetivo. Há muita gente a viver assim, em família. Falam de tudo, mas ao lado do que é preciso, só para não serem apanhados olhos nos olhos. Para algumas destas pessoas, é suficiente a presença de uma orelha disponível.

Vou dar o exemplo da Lídia. Alienada dos seus próprios sentimentos de abandono, projeta tudo isso nos outros, buscando resgatá-los, quando é ela que tem fortes dependências afetivas. É uma espécie de boa samaritana, ajudando este e aquele amigo, este e aquele namorado, este e aquele desconhecido. Só não se resgata a si mesma. Dá, dá, dá, e não se põe a jeito para receber, gerando desequilíbrios em todas as relações. O cansaço instala-se, e é de tal ordem, que resolve o assunto fechando o coração dentro de uma armadura. Depois do último divórcio, devotou a sua vida a superproteger as filhas, encurralando-as numa dependência doentia.

Nestes casos, ao fim de muitas desilusões, pode acontecer uma de duas coisas: desenvolver-se comportamentos aditivos, para não sentir a carência (sexo sem compromisso emocional, trabalho em excesso, viver para os outros, drogas, etc.); ou fazer uma introspeção séria (terapia, por exemplo) para ir à raiz do problema, abrir o coração e recuperar o amor próprio. Voltando à Lídia, era preciso que ela fosse ao fundo do seu abandono, ao seu corpo de dor, e resgatar-se. Só assim, aprendendo a olhar para as suas necessidades profundas, poderia libertar-se do papel de salvadora e construir uma relação nutritiva com alguém.

É um desperdício transformar as relações em palcos tão pobres de partilha! Observo, com alguma preocupação, que algumas pessoas controlam os relacionamentos através do dar, garantindo assim a presença do outro. Outras, pela vitimização manipuladora. Outras ainda, pela atitude de agradar, ficando à mercê da vontade de alguém. No entanto, ao jantar, os olhos não se cruzam, os assuntos não são íntimos, e o telemóvel ganha destaque. Não há encontro.

Nem de propósito, dobrava eu a esquina da minha casa, quando uma vizinha, moça com pouco mais de 30 anos, me intercetou, muita aflita:

– Sei que a vizinha é psicóloga…

– Sim… – balbuciei, surpreendida.

– Preciso muito de ajuda… é por causa do meu namorado – e desatou a chorar abraçando-se a mim.

Alguns dias depois da nossa conversa, tive curiosidade em saber como é que ela estava.

– Ele voltou… – disse ela, com um sorriso de orelha a orelha.

– Chegou a telefonar à minha colega? – perguntei.

– Não. Já não é preciso.

– Deixe-me dizer-lhe uma coisa. – tentei eu, mais uma vez. – Se não resolve a sua questão de fundo, ela bater-lhe-á à porta, novamente.

O resto, não é necessário contar. O caso ilustra bem o texto que acabei de escrever.

Tanto é uma escolha livre, fugir de si mesmo, perpetuando a vítima, como o é, arregaçar as mangas e trabalhar corajosamente sobre os calcanhares de Aquiles. Esta última opção pode revolucionar a nossa vida, fazer-nos sair da mera necessidade de companhia e escolher criteriosamente a pessoa que queremos ao nosso lado, entrando no domínio das relações maduras, fontes de amor e crescimento mútuo.

21 dez, 2019

DIREITO POR LINHAS TORTAS

 – “És ímpar, minha filha. – afirmou a mãe, sem esconder algum orgulho.

Matilde deixou-se abraçar demoradamente, como há muito tempo não fazia. A sua vulnerabilidade deu-lhe direito a muitas festas no cabelo e a palavras carinhosas, cheias de pepitas de esperança.

Matilde é uma daquelas pessoas que larga o certo pelo incerto, para tentar salvar a pureza das coisas. Não negoceia o seu valor, mas vacila, como toda a gente, perante o vazio da perda.

– Fica tranquila – assegurou a mãe. – Só vejo bênçãos à tua espera. Nunca lamentes fazer o que está certo.

Matilde fechou os olhos e, exatamente ali, no peito quentinho maternal, adormeceu.” Excerto de um pequeno conto

 

É preciso ter coragem para ir ao fundo das questões. A busca de vivências inteiras é uma espécie de travessia no deserto, onde só a sabedoria permite povoá-la de esperança.

Quando se atinge um certo grau de consciência, a responsabilidade é maior. Já não é possível seguir o caminho mais fácil, ainda que este nos poupasse a muitos medos e incertezas.

Fazer o que está certo corresponde, muitas vezes, a mergulhar na solidão e confiar na mão generosa do universo.

Fazer o que está certo implica, frequentemente, deixar ir o controlo, em prol de um prazer maior, num futuro mais belo e promissor. É ter a coragem de caminhar sozinho, por linhas tortas, sem se perder o fio condutor das profundas convicções. É dar espaço e libertar alguém, por amor.

Fazer o que está certo é a forma mais rápida de se chegar onde se precisa de chegar.

14 dez, 2019

 

 

QUANDO O AMOR NOS BATE À PORTA

“Quando o amor chega inesperadamente e bate à tua janela, apressa-te e deixa-o passar, mas primeiro fecha a porta da razão, uma vez que até a mínima ameaça o pode assustar, tal como o fumo afoga o frescor da brisa da manhã.

À razão, o amor diz que a estrada está fechada: – você não pode passar! – mas, ao amante, oferece centenas de bênçãos. E antes que a mente dê um passo, o amor atinge o sétimo céu.

O amor escalou a montanha sagrada! Eu tenho que parar de falar e deixar que o amor fale do seu ninho de silêncio”. Rumi

 

Quando o amor nos bate à porta, dá sempre sinais, pedindo a nossa extrema atenção.

Quando o amor nos bate à porta, em vez de o tentar prender, é melhor deixá-lo respirar bem, vê-lo passar airosamente por nós, fazer amizade com ele e calar imediatamente a voz do medo. Esta funciona como obstáculo e traz ao de cima todas as sabotagens e resistências, levando os potenciais amantes a refugiar-se na cabeça.

Quando o amor nos bate à porta, é aconselhável olhá-lo nos olhos, a uma distância de segurança, durante o tempo que for necessário, porque é bem possível que, atrás dele, venha o rasto de muitas feridas do passado. É justamente quando o amor aparece, que aquelas (feridas) se atravessam, raivosamente, para defender a sua armadura.

Quando o amor nos bate à porta, e a falta de confiança for maior, apressemo-nos a pedir a ajuda de alguém que mande calar a nossa mente verborreica, e nos abrace durante muito, muito tempo. E, aí, nos permitamos começar o caminho da cura, a partir de um ninho de silêncio.

Quando o amor nos bate à porta, é porque o merecemos! É, porém, preciso usar de sabedoria, saber esperar e, nesse templo interior, ir preparando o festim sagrado da abundância.

Quando o amor nos bate à porta, é fundamental agradecer!

8 dez, 2019

 

 

 

 

 

PAI

Passaram-se quase 16 anos, depois da morte do meu pai. De repente, dei-me conta da falta que ele me faz. Era um homem grande e era o meu pai. Às vezes precisamos de dizer “Olha, aquele é o meu pai”. A mão dele era forte e conseguia, de uma assentada, apanhar-me o cabelo todo. Tenho saudades das viagens longas em África, dos milhares de quilómetros percorridos sem avistar vivalma, dos animais que se cruzavam no nosso caminho, dos rios enormes com jacarés e jangadas. Sempre tive muito medo dos jacarés. Não me esqueço daqueles olhos e bocarras ameaçadores e das histórias que se ouviam. Algumas delas, contou-me ele. Dessas, eu não gostava nem só um bocadinho. Tenho muitas saudades das canções. Ele cantava muito. Eu chorava porque ele imprimia emoção às palavras e gostava de impressionar. Conhecia-me bem. Sei-as todas, de cor e salteado, algumas em Umbundo.

Era um sonhador e um visionário. Desenhava sonhos. Que engraçado! Ele desenhava sonhos e eu danço sonhos.

– Filhos, venham cá!

E lá íamos nós a correr, eu e os manos.

– Estão a ver esta casa? Um dia, vai ser nossa.

E assim aconteceu, muitos anos depois, já nós éramos crescidos, em Portugal.

Este é apenas um exemplo. Há muitos outros, no sótão das minhas recordações.

Aprendi com ele que o sonho comanda a vida e que se morre quando se deixa de acreditar. Foi assim que ele morreu. Foi deixando de acreditar.

Deixou-me, como herança, a ousadia e o pensamento divergente, ainda que, muitas vezes, de forma caótica. É mesmo verdade que é do caos que vem a criatividade.

Era o homem dos sete instrumentos. Pintava, tocava banjo e piano (vim eu a saber há bem pouco tempo), cantava, desenhava, desmontava carros, arranjava-os, montava-os novamente e vendia-os, era empreendedor, homem de negócios, poeta e Dom Quixote. Sim, tinha um quê bem grande de Dom Quixote. Tanta coisa num pai só! Também tinha coisas pouco simpáticas, como muitos pais. Essas já foram todas choradas e mais que choradas.

Hoje, ao olhar para uma fotografia dele, tive saudades do deslumbramento que me causava e saudades de tudo o que não me deu, do que faltou, do que poderia ter sido, que, curiosamente, ele deixou, em esboço, nos seus desenhos. Estão agora entregues a mim, à minha capacidade de lhes dar forma. Fiquei com os seus pincéis e com uma cabeça cheia de histórias para inventar, com alguns enigmas para resolver e com muitos desafios pela frente. Sim, foi um pai que me deixou muitos desafios e é por isso que um dia me disseram que eu ia viver muitos anos. Que por ter muito trabalho pela frente, nasci com um bónus de vitalidade, para poder dar continuidade aos sonhos do meu visionário pai, desmontar muitos deles e transformá-los noutros, bem diferentes, mais acertados.

Hoje olho para trás e vejo-me aos saltos, a rebelar-me contra aquilo que achava injusto, a reclamar liberdade, e ele a disfarçar um sorriso, achando-me graça. O sorriso, esse, só reparei bem mais tarde…

Era assim a vida com o meu pai. Uma torrente de emoções.

Era um alquimista.

Tenho curiosidade em saber o que é que ele me diria quando se apercebesse que me tornei numa Dj, quando seria suposto, pelo status quo, ser uma presidente qualquer de uma qualquer associação. Estou convencida de que não se surpreenderia…pois isso faz parte da herança que ele me deixou. Nunca mais me hei-de esquecer da aparelhagem Pioneer espetacular que ele tinha no carro. As viagens eram feitas em silêncio, a ouvir música da mais refinada qualidade, com som de alta fidelidade. Gravei-lhe muitas cassetes ao longo da vida. Toquei muita guitarra e cantámos juntos. Já para não falar da discoteca do Hotel dele! Grande música, anos 50, 60,70 e 80, em vinil, claro, e muito jazz, como não podia deixar de ser.

Tenho saudades do meu pai. Não foi perfeito, longe disso. Mas foi-se tornando perfeito, dentro de mim, com as pinceladas que lhe fui dando ao longo dos anos. Neste preciso momento, está a suportar-me as costas e a sussurrar-me ao ouvido para nunca, mas nunca deixar de acreditar nos meus sonhos porque os sonhos têm vida própria e nunca morrem.

Tenho saudades do meu pai.

7 de dezembro, 2019